Do livro dos poemas bobos. A Vida Excede

“Como é perversa a juventude do meu coração
Que só entende o que é cruel, o que é paixão."

São 21:35 da noite de um sábado e estou em meu quarto lendo um artigo sobre a Psicanálise e a impossibilidade do real, a sua inacessibilidade. Uma frase ganha densidade e som nos meus pensamentos. Posso ouvi-la como se um estranho a sussurra-se para mim de dentro da minha própria mente. “A vida excede.” “A vida excede”. “Das ding...” Diz a voz com um tom sábio e soturno. Ignoro. Não quero me deter em elucubrações filosóficas e melodramáticas. Estava lendo justamente para distrair o pensamento, me distanciar da lembrança de você. Lembrar de você dói. Dói uma dor intolerável. Até então não tinha fracassado em nada realmente importante... Li uma vez que todo escritor escreve sempre só sobre um grande tema... Tenho escrito sobre você. Acho que é minha maneira de tentar me perdoar... Mas lembrar de você dói. Dói de maneira insuportável. Droga! Acho que não escolhi bem o texto. 

A frase retorna. “A vida excede.” “A vida excede.” “Das ding...” Eu preciso de outra intensidade que não você. Volto a ler o texto. Toca a campainha de casa. Não me movo. Deixo alguém atender. Não quero ter que conversar. As pessoas têm a mania de começar as conversas com perguntas do tipo, “como estão as coisas?” E eu tenho o péssimo excesso de ser sincero demais em um mundo superficial. E a tal “coisas” andam meio caóticas. Continuo a ler. Assim não vão me incomodar. “A vida excede.” “A vida excede.” “Das ding...” 

É um amigo de infância. Eduardo. Minha irmã o avisa que estou em casa. Ele já está no meu quarto. Estranho... Não me lembro de como e quando o conheci... Mas desde então ele está sempre presente. Parece que as amizades acontecem assim. Que são assim. Sem etiquetas. Sem aviso prévio. Ele vai para o aniversário de uma tal de Fernanda. E eu com isso!? Não conheço nenhuma Fernanda. Mas Eduardo é um orador persuasivo. Ele sempre dá um jeito de conseguir o que quer. Sempre o admirei e o invejei por isso. Depois de uma rápida ode hedonista sobre a brevidade da vida e do dever de vive-la com a máxima intensidade para honrar a boa sorte de nossa saúde, estava eu no salão de festas do enorme prédio onde mora a tal Fernanda. Havia som, bebidas e muitas pessoas. Inclusive muitas mulheres belas. “Lembrar de você dói... Dói uma dor intolerável.” Aaaaaah, droga! Quase tudo que era supostamente para me divertir, acaba me entediando. Como lidar com tanta gente!? Ainda mais gente desconhecida e em grupos. Nunca lidei bem com conversas em grupo. Como dar a atenção a todas as pessoas!? As pessoas em grupos entram numa dinâmica própria meio difícil de transpor para quebrar a barreira da indiferença. 

Eduardo nutre um carinho terno e sincero pelas pessoas, mas não consegue permanecer por muito tempo em uma conversa com as mesmas pessoas, na mesma situação. Intrépido como o vento, ele sibila e esvai-se. O fato é que estou sozinho com minha bebida em mãos e encostado numa das paredes ásperas do salão de festas, observando. Um observador distante da própria vida. É tão contraditório se sentir tão sozinho em meio a tanta gente. Eduardo é foda! Queria mesmo me lembrar como foi que ele entrou na minha vida... Não consigo! Por hora, lembro apenas que a três anos atrás ele fez exatamente a mesma coisa. Mas a festa era de uma tal de Aline e era numa casa. Mas Eduardo sumira da mesma maneira e, como agora, acabei sozinho com minha bebida em mãos e encostado nas paredes lisas da casa. Nesse dia, conheci Anna. Incomodado com minha própria companhia e com meus pensamentos ensimesmados, puxei conversa com ela. Depois de minutos de uma conversa animada, ela me chamou para dançar forró. Apesar de não dançar nada e principalmente forró, aceitei. Aceitei insuflado por aquela confiança que advém com a estima de uma mulher. Mas logo nos primeiros passos e pisões ela sugeriu, aos risos, que sentássemos novamente. Tive um romance com Anna que acabou com algumas semanas. Ela é a mulher mais excêntrica e temperamental que já conheci. E eu, talvez, tenha sido o homem mais excêntrico e temperamental que ela já conheceu. Ela altiva, verborrágica, impulsiva e cheia de manias e superstições. Lembro que não podia falar a palavra vermelho perto dela que ela entrava em pânico. Apesar de ver objetos em vermelho sem problemas. Inclusive quando a conheci na festa de Fernanda ela usava um vestido vermelho. Só o ouvir é que a fazia surtar. Ela nunca soube me explicar o porquê disso, mas todo o tempo que estivemos juntos eu usei a palavra azul quando queria falar a palavra vermelho, sendo o uso da palavra digamos “azul-azul” naturalmente diferenciado pelo contexto. Desde então não me agrada a cor vermelho. Eu, introvertido, de poucas palavras, comedido nos gestos e expressões e demasiadamente pensativo. Os imãs opostos se atraem... Não deu certo. 

Parece a droga de um dé jàvu! Porque ainda deixo Eduardo me persuadir dessa maneira!? Não somos mais crianças! Não tem jeito... A ferida aberta da solidão fustiga novamente com todos os olhares que buscam perscrutar o meu que esquivo procura por sei lá o quê... Branca de uma brancura cândida e áurea. Cabelos negros, lisos e curtos. Feições assimétricas. Boca enorme de lábios finos contrastando com o pequenino nariz arrebitado e o olhar estreitado de uma íris de um negro voluptuoso e misterioso. O sorriso dela deve ser lindo...” “Lembrar de você dói... Dói uma dor intolerável.” Droga! Saio em direção ao acaso de meus olhos e puxo conversa com a garota de feições assimétricas e cabelo curto que se encontra sozinha com sua bebida em mãos apoiada na parede oposta. Laura. Conversamos por um longo tempo. Até que a intimidade das palavras nos solicitasse a intimidade dos corpos. Chamo-a para dançar. Desde que pisei nos pés de Anna venho treinando a arte da dança. Dancei um forró pé de serra com Laura. Com nossos corpos colados pude ver o sorriso largo de Laura que parecia ter mais dentes do que o normal e que fazia covinhas nos cantos de sua boca. Seu sorriso é lindo. Ela ri do meu jeito de dançar. Acaba por pedir para sentarmos, dizendo que para dançar com ela não basta o meu “dois para um lado, dois para outro”. Tem que rodopiar e jogar para o alto feito um pião. Eu rio exasperadamente. Demorei três anos para conseguir dar esses “dois para um lado, dois para outro” sem que parecesse que eu estava seguindo o ritmo de uma música que toca só em minha mente e não no ritmo da que toca no ambiente. “A vida excede”, pensei eu. Ela pergunta o porquê de tanta graça. E, agora, sentados um bem próximo ao outro, eu conto a ela toda a ironia da história que me leva a ela e ao meu riso exasperado como se fosse um reflexo do seu sorriso absurdamente largo. As minhas ainda piores habilidades de dança quando conheci Anna. As excentricidades de Anna. Eduardo e seu poder de persuasão. O texto de Psicanálise e o fato de a vida sempre nos exigir mais. Dela sempre nos surpreender. Dela exceder. Laura ri. Seu sorriso é realmente lindo. Nós nos beijamos.

“Lembrar de você dói... Dói uma dor tolerável.”
“A vida excede. A vida excede. Das ding...”
Diz a voz estranha em minha mente num tom sábio e soturno.

Texto de Thales Fernandes, um querido <3

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