A Coisa no Fosso

Parte 1 - O Esgoto


O velho gol estacionou na vaga dentro do shopping. Era provável que ele passasse a noite inteira lá. Era provável que ele nunca mais saísse de lá, porque também era muito provável que o dono nunca mais voltasse.

Cláudio saltou de dentro do automóvel e foi direto para o porta-malas. Era uma noite fria, mas ele suava um sol de meio-dia. Olhava para os lados, procurando pelo vazio, porque era dele que precisava nesse momento. Quando o achou, abriu o compartimento traseiro do carro e pegou as ferramentas que precisaria.

Pé-de-cabra. Lanterna. Capacete. Luvas. Espingarda. Tudo estava lá. Tudo okay. Era hora de resolver aquele problema de uma vez por todas.

Ou nunca mais conseguiria dormir.

Ele enrolou tudo numa manta, amarrando com corda para fazer, às vezes, de alças. Com essa bolsa improvisada, caminhou à passos largos, contando com a inexistência de espectadores para sair daquele bendito estacionamento.

As ruas ao redor do shopping eram escuras. Sorte. Assim ninguém o veria. Chegara o momento de encarar a Coisa. Cláudio se aproximou de um boeiro. Olhando para os lados, vasculhando o terreno em busca de observadores. Nada. Que sorte. Que conveniência. Era como se o universo conspirasse para ele abrir aquela tampa. Sacando seu pé-de-cabra, o operário do serviço sanitário só precisou de dois golpes para abrir o boeiro. A tampa desprendeu-se, abrindo a passagem para um mundo escuro e fétido, que ele, experiente como era, conhecia bem.

Os gases que escapavam pelo fosso aberto eram quentes e densos, e quando adentravam as narinas, parecia que iriam queimar tudo: traqueia, pulmão, alma. Cláudio sacou sua máscara e cobriu o rosto. Fez uma última oração e, olhando mais uma vez para os lados, para constatar a bizarra ausência de pessoas na rua, inciou sua descida rumo à escuridão.

Para onde o pesadelo tinha começado.

*************

Dias antes, ele havia descido ali pela primeira vez com sua equipe de costume. Inspeção de rotina. Eles deveriam vasculhar por entre as galerias e procurar por obstruções à passagem das águas e removê-las. Rotina, como sempre. Mas não naquele dia.

Como um bom supervisor, ele dividiu as equipes em duplas. Então foram cada um em uma direção, averiguando a qualidade das galeria e reportando problemas, além de limpá-las. Ele decidiu levar consigo o novato Eduardo, aproveitar para lhe dar algumas dicas e observar o desempenho do rapaz.

Dentre outras coisas. Eduardo tinha 24 anos. Era um jovem de compleição física impressionante: alto, forte, mas de corpo delgado, tez morena, rosto afilado. Tinha olhos castanhos e profundos e sorriso largo. O tipo de homem que chama a atenção de muitas mulheres.

O tipo de homem que desperta uma inquietação em muitos homens.

Os dois caminharam pelas galerias enegrecidas pelo tempo e pela sujeira. À frente, quilômetros de túneis interligados pela necessidade humana de consumir e descartar, produzir e se livrar. Havia todo o tipo de coisa se deteriorando no meio daquela lama espúria, coisas que de tão arruinadas não poderiam ser identificadas.

- Tá gostando do trabalho, novato? 

- Sim, senhor. - respondeu Eduardo – Claro que não é um emprego que uma mãe deseja à um filho, mas paga as contas. No final é isso que importa.

- Que bom. Fique atento aqui nas galerias, tem muita coisa perigosa aqui. Você fica exposto a todo tipo de porcaria, bicho nojento e doença. Às vezes a gente encontra umas coisas bem bizarras. Espero que você não se impressione fácil.

- Não me impressiono.

- Nesse trabalho a gente conta principalmente com a ajuda de Deus. - Disse Cláudio, mostrando a corrente com a cruz para o subordinado.

- Eu não acredito em deus, Seu Cláudio.

- Ah não? Mas por que, homem?

Eduardo deu de ombros. 

- Eu faço coisas que ele não gosta.

Cláudio observou o companheiro por alguns segundos, pensativo. Do que ele estava falando? Bem, no momento, não importava.

Eles viraram em uma esquina e perceberam uma grande quantidade de dejetos bloqueando a passagem da água. Havia desde pedaços de moveis de madeira até restos de carrocinhas de cachorro-quente, enferrujados e amassados. Eles estavam todos acumulados em um escoadouro que levava as águas da chuva e do sistema de esgotos residenciais para um nível mais baixo.

- Como essas coisas chegaram aqui?

- Nem imagino. É sempre assim nas galerias. Não é só merda e mijo que vem pro esgoto, rapaz. O ser humano joga todo tipo de porcaria fora. É até comum a gente achar feto abortado aqui.

- Caralho!

- É sério. Essa mulheres... não sabem a dádiva que estão recusando...

Eduardo não respondeu. Foi até o monte de lixo e começou a tirar as coisas para liberar o escoadouro. Cláudio o observava. Havia algo de estranho com aquele rapaz. Não era uma coisa física. Era o jeito dele, a sua maneira de agir. Era estranha, suspeita. Ele não sabia explicar.

- Não vai dar pra gente tirar tudo isso daí só nós dois. Vou passar um rádio pra chamar as equipes pra dar uma mão pra gente aqui

- Certo. Eu vou adiantando aqui o que for possível.

O supervisor passou um chamado pelo rádio informando o local onde estava e a situação que havia encontrado. Enquanto sua boca falava ao H.T., seus olhos novamente estavam sobre o novato. O vigor de trabalho de Eduardo era admirável. Cláudio realmente respeitava homens que tinham aquela grande vontade de trabalhar, e o seu novo subordinado era impressionante e vigoroso.

Ele se pegou sorrindo.

- Vamos lá, novato – falou o supervisor – vamos adiantando trabalho enquanto a patota não chega...

Foi quando o homem gritou e se lançou tropegamente para trás. Eduardo deu um encontrão no seu chefe levando tanto ele quanto Cláudio ao chão encharcado de imundice daquela galeria.

Os rostos dos dois se encontraram. Cláudio sentia o peso do corpo do homem em cima do seu. Ele arfou. O cheiro da pele do novato entrou pelas sua narinas e sobrepujaram os odores quentes e nocivos do esgoto, fazendo-o se regojizar por alguns instantes.

Ele suou frio e sentiu os pelos do braço arrepiarem... Desejo...

Foi só por alguns segundos. Eduardo levantou-se de supetão e ajudou o seu chefe a erguer-se logo em seguida. 

- Que foi isso, rapaz?! - perguntou Cláudio, ainda atônito com o que havia acontecido e sentido. 

- Tem alguma coisa ali! - Respondeu o subordinado, indo na direção do lixo.

Eduardo começou a tirar o entulho rapidamente. Cláudio juntou-se a ele, tentando esquecer as emoções que aquele acidente ocasional tinham despertado. Ao remover um tecido deteriorado que um dia fez parte da cobertura de um sofá eles finalmente acharam aquilo que tinha assustado o novato.

O esqueleto estava enegrecido, como se tivesse sido queimado. Havia uma substância escarlate besuntada no pobre cadáver. A princípio, os dois acharam que era sangue, mas depois notaram que, pela tonalidade da cor e textura, aquilo era outra coisa, uma coisa que eles sequer imaginavam o que seria.

- Senhor, isso é comum aqui?

- Não é, não. Até pra cá, isso é esquisito pra cacete!

Cláudio estava perturbado. Nunca tinha visto um cadáver naquelas condições em suas galerias antes. Mas estava ainda mais perturbado com a presença de Eduardo e com o que ele estava lhe causando.

O que era aquilo que ele sentira, instantes atrás, quando teve o corpo do rapaz sobre o seu? Que instinto foi aquele? Aquilo não podia ser de Deus. Não. Era algum tipo de tentação. Uma armadilha do inimigo para desvirtuá-lo do caminho da verdade, como acontecera antes. Mas ele era forte. Não cairia naquela armadilha outra vez.

Ele passou um rádio para todas as equipes irem imediatamente para a sessão onde eles estavam e informassem à central sobre o corpo achado. Enquanto isso, Eduardo tentava tirar o entulho ao redor do cadáver. Apenas a parte superior do esqueleto estava visível. A metade inferior ainda estava sob todo aquele lixo. A substância vermelha vertia do meio do entulho, como se estivesse brotando por baixo do escoadouro. Ela ensopava o esqueleto descarnado, negro de fogo, como se banhasse aquele corpo sem vida.

Foi quando Cláudio, distraidamente, notou algo.

As sombras... estavam crescendo.

A iluminação das galerias era feita com um conjunto de lâmpadas fluorescentes que iluminavam todo o esgoto. Obviamente, os técnicos nunca deixavam de levar suas lanternas consigo, no caso de uma pane no sistema de iluminação. Cláudio notou que a luz estava ficando cada vez mais fraca. Observando o monte de lixo que se formara sobre o escoadouro, foi que ele notou. Era como se as sombras estivessem... se expandindo. Elas cresciam lentamente, tomando o lugar da luz, ou empurrando a luz.

Não. Não era isso.

Não eram as sombras que empurravam a luz. Era a luz que recuava, que voltava para as lâmpadas que a geravam, que voltava para a segurança de seu receptáculo.

A luz estava fugindo.

Logo a escuridão se tornou palpável. Também havia um som agora. Um rebumbar baixo que fazia o lodaçal vibrar. Era como se alguma coisa pesada estivesse chegando de um lugar distante. O filme Parque dos Dinossauros veio a sua mente quase que instantaneamente. Mas não da maneira divertida como ele costumava lembrar.

Eduardo também notara. Ele se afastou do esqueleto e ficou lado a lado com seu chefe. Quando ambos notaram que ficariam na escuridão total se prepararam para acender as lanternas. Por algum motivo, Cláudio sabia que não iria adiantar.

Finalmente, a luz sumiu. Ela recuou até as lâmpadas, e essas apagaram vagarosamente, como se tivessem queimado. Sem dizer uma palavra ao outro, Cláudio e Eduardo acenderam suas lanternas e apontaram-nas para o cadáver. Mas no momento em que os fachos banharam aquele corpo sem vida estirado sobre toda a sorte de imundice humana, a luz começou a recuar, lentamente, voltando para dentro dos aparelhos. Quando estas retornaram, as lanternas se apagaram.

Eles estavam no completo escuro.

Conseguiam ver claramente apenas um ao outro e o cadáver. Aquilo não podia ser. Sem luz, não poderiam ver sequer um palmo a frente. No entanto, podiam ver-se e ao esqueleto. Cláudio notou que não conseguia mais ter noção dos espaços ao seu redor. Era como se eles tivessem saído da galeria e aparecido em outro lugar, sem limites espaciais claros. Mesmo fazendo um esforço mental para lembrar-se de como era a galeria antes daquele fenômeno bizarro acontecer, percebeu que era impossível mensurar formas, distâncias e imensidões. E ainda sim, estavam lá, os dois homens lado a lado com um esqueleto negro diante deles.

O rebumbar novamente.

Estava mais próximo dessa vez. Algo estava vindo.

De repente, um som estrondoso baniu o silêncio da escuridão para sempre. Uma erupção violenta arremessou quilos e quilos de lixo, liberando a passagem do escoadouro. Os dois homens caíram sentados na água espúria e infecta, e ficaram cobertos por uma camada de dejetos humanos e outras sujeiras. Mas nem de longe isso era o pior.

O pior era aquilo. Aquilo que estava saindo do escoadouro.

Cláudio viu um braço. Ou algo semelhante a isso. Devia ter uns seis metros de comprimento. Ou uns oito. Era difícil mensurar, porque era difícil compreender aquilo. A coisa movia os dedos de uma forma que não era somente impossível para um humano por conta das limitações ósseas das nossas articulações. Ela movia os dedos em direções que não existiam.

O braço gigante deu espaço a outro e ambos arrastaram um corpo inimaginável para fora do fosso do escoadouro. Foi quando Cláudio viu a coisa por completo.

Aquilo que não era possível existir.

Simplesmente não havia parâmetros para compreender. Estava além da lógica. Além da imaginação.

Instantaneamente, Cláudio se pôs a correr.

Ele ouviu os passos de Eduardo atrás de si. Ele também tinha visto aquilo. A Coisa que a luz temia. Ambos corriam para escapar de algo que eles não compreendiam, uma força que jogava no vazio tudo que eles haviam aprendido sobre o mundo e que, eles tinham certeza, estava ali para destruí-los.

O chão tremia, criando pequenas ondas de lama. O impacto de algo infinitamente pesado ecoava como um trovão através daquela galeria de trevas. A Coisa estava indo atrás deles, implacável.

Cláudio não sabia onde deveria virar e torcia para não dar com cara em algum muro. Caso ele parasse, caso ele não pudesse mais correr, sabia que a Coisa o pegaria, devoraria-o. Clamou por uma intervenção divina, mas Deus nada respondeu.

Estranhamente, os dois continuavam correndo em linha reta e não foram ao encontro de nenhuma parede. Era como se aquele espaço tivesse sido alterado e os muros tivessem sumido. No entanto, a lama, a sujeira, os cheiros permaneciam. E a Coisa também. Apesar de não vê-la, Cláudio sabia que ela estava atrás dele, arrastando-se com seus braços descomunais, sua locomoção provocando tremores no chão lamacento. A Coisa não emitia nenhum tipo de som, guincho ou grito. Era um perseguidor que, não fosse o choque de seu corpo colossal contra o ambiente, seria silencioso como a escuridão que o precedera.

De repente, algo se alterou no ritmo das passadas. Ele olhou para trás e o que viu lhe aterrorizou.

Eduardo estava caído enquanto a Coisa se aproximava. Cláudio arregalou os olhos de terror e se voltou com intenção de ajudar o colega.

Mas não o fez.

Hesitante, ele lembrou do que acontecera minutos antes. O clamor desejoso que aquele homem lhe provocara. Ele era a fonte da tentação do diabo e com certeza a Coisa era o próprio diabo tentando levá-lo para o inferno. Mas ele não cairia naquela armadilha.

Não de novo. 

- Cláudio! - Gritou Eduardo, desesperado, estendendo a mão para o seu chefe.

- Eu… Eu sinto muito! Eu não posso! Deus… Deus vai compreender!

Antes que ele pudesse ouvir qualquer reposta do outro homem, aquele braço negro e descomunal surgiu das profundezas obscuras daquele fosso. A mão envolveu o tronco de Eduardo, fechando-se ao seu redor. No caos das galerias infernais, o som de ossos sendo estilhaçados por uma força infinita ressoou pelas paredes invisíveis. Antes de desmaiar Cláudio pode ouvir os gritos de seu ex-companheiro.

Foi a última vez que viu Eduardo.

Com vida.

Comentários

  1. Very Good! Quase me senti num conto de Lovecraft.

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  2. Gente, avisando que esse conto tem três partes. A segunda vem na próxima quarta!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Muito bom o conto.
    O que mais me intrigou foi os sentimentos do Claudio.

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  5. Gostei bastante. Realmente lembra o clima lovecraftiano de desconhecido e suas descrições são muito ricas.

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