Débito

As gotas pingando a deixavam fora do sério. Outra vez ela vai ao banheiro para lavar o rosto e tentar fechar a torneira. Não importava quantas vezes tentasse, continuava a pingar e pingar e pingar e... Já tinha dito ao gerente, que de gerente não tinha nada, a respeito daquilo. Filho do dono do supermercado de localização periférica, achava "gerente" mais bonito que seu nome. Dizia que ela apertava demais a torneira e que “se estrompar, paga”. Pagar o que? Com que dinheiro? Perder dinheiro que já não tinha era algo impensável. Mesmo assim, mesmo apertada, ela apertava.

Abria e fechava com insistência, mas as gotas continuavam persistentes, permanentes, e ela sofria.

Saiu. Foi ajeitar prateleiras, contar estoque, limpar vômito de criança na sessão de enlatados. Voltou ao banheiro. Olhou as horas no celular pequeno de teclas. Ainda nove da manhã. Lavou as mãos, o rosto, fechou com força a torneira. Fitou seu reflexo cansado no espelho. Magérrima, negra. Cabelo de progressiva, insistência da família, porque cabelo duro é feio. Entre as olheiras, horas de sono inexistentes.

Saca do bolso a embalagem plástica com um nome difícil de ler. Mantém na mão um tempo, logo a guarda. Olhar a embalagem tinha se convertido em costume.

Por causa das dores de cabeça frequentes, foi ao posto de saúde e o médico lhe passou uns comprimidos que iam ajudar a melhorar a insônia. Como tomar os remédios às onze da noite para acordar às cinco da manhã? Trabalhando no supermercado em posições variadas, fazendo expedientes a parte, morando em outra cidade.

Caixa, atendente, repositora de estoque, ajudante da limpeza, embaladora. Não era "gerente", era "moça"/"mulher"/"senhora”. Gostaria de ter seu nome, pelo menos.

Abre e fecha a torneira outra vez. Que merda de torneira, que merda de emprego, que merda! Ela respira fundo se acalmando. Um, dois, três, quatro... Inspira. Expira. Se desespera outra maldita vez.

Sai do banheiro, dá meia volta.

Pensou ter ouvido pingar outra vez. Estava certa. A goteira insistente ecoava. O cheiro das fezes se intensificava. Azulejos da parede, antes brancos, tinham um tom acinzentado. Sentiu vontade de infantilmente vomitar no corredor dos enlatados.

Toma um, apenas um, dos remédios para dormir.

Os pensamentos se acotovelavam quase que soltos pelo banheiro. Quase se ouvia o eco das vozes, todas suas, que se apressavam em dizer distos e daquilos.

- Ei! O pessoal quer usar o banheiro também!

- Já vai. - a voz saiu fraca, engasgada. Sua voz era essa mesmo?

O líquido ácido sobe pela garganta. Ela tenta conter, mas quando menos espera está curvada sobre o vaso entupido. O jorro amarelo sai da sua boca. Nada sólido, exceto o resquício de pão com manteiga do café da manhã e o comprimido.

Pingos outra vez. Mais comprimidos. Ninguém sentiria falta no trabalho. Meia hora dormindo deveria bastar.

Despeja algumas das pílulas do frasco, coloca na boca, engole a água da torneira mesmo, de um jeito tão desengonçado e desesperado de quem acha que teve uma boa ideia. Respira o ar fedido aliviada. No espelho já parecia um pouco melhor, um pouco menos ela, um pouco mais feliz. Despontava um sorriso tímido que só ela enxergaria, um sorriso sorrido com o canto dos olhos.

Talvez nem precisasse dormir. Podia trabalhar assim mesmo. Mais tarde voltar pra casa, se decepcionar outra vez com as faltas. A família grande, todos trabalhando e o dinheiro esvaindo em contas que nem sabiam como tinham feito. Faltava até pra comida, mas - vez ou outra - o gerente dava aquelas verduras que ninguém comprava para os empregados. Não dava querendo, claro. Dava porque sobrava, porque era o jeito. Se desse tudo a um cão ou gato daria no mesmo, e quem é mais cão ou mais gato que os que trabalham para os gerentes?

Puxa a corda e dá a descarga. O líquido do vaso sobe, mas não desce, não entra. Os comprimidos ameaçam voltar e ela bebe a água branca da torneira outra vez. Lembra situações familiares nos filmes.

A embalagem laranja dos remédios seduzia.

A mão aberta. Os comprimidos. Uma última olhada no espelho sujo. Os olhos encontraram a si mesma por trás de todas aquelas gotículas de vapor acumuladas sobre o reflexo. Que horas eram? Começava a se sentir sonolenta.

A boca, dessa vez cheia, encosta na torneira enferrujada e dá longos goles.

Senta no chão, encostada na parede. Se Deus quisesse, estaria melhor depois. Talvez a achassem no chão, levassem pro hospital. Talvez quando ou se acordasse de novo, tivesse menos problemas. Talvez tentasse um supletivo, outro. Talvez não abandonasse. Talvez não se abandonasse. "Abandonar" era verbo frequente para ela, para os moradores do seu bairro, para os usuários de ônibus lotados e para os homens, mulheres e crianças que pedem esmola, vendem pastilhas e/ou limpam parabrisas.

Abandonados. Abandonando. Como cachorra de rua que pare andando e deixa a cria no meio do caminho para emprenhar mais, parir mais, morrer atropelada.

Prenha. Olhos abertos. Estáticos. Tirando o estar prenha, morreria com os olhos abertos também? Morreria?

Escorrega devagarzinho até o chão molhado. Dorme. E lá fica por duas horas e meia até alguém decidir que era injusto outro tomar o banheiro assim. Ela não era igual a todo mundo? Pedem a chave reserva pro gerente, que ainda resiste um horror antes de ceder à vontade dos funcionários.

Quando abriram a porta, não foi muita surpresa vê-la no chão.

- É pressão, acho. - arrastaram e colocaram em uma cadeira.

Corpo mole e pálido. Boca aberta ressecada. Olhos fechados ainda bem que fechados.

- Bota álcool pra ela cheirar - gritou um alguém, que observava o tumulto de longe.

Como que sem resposta, sem movimento algum, pensaram em levar pro hospital. O gerente não queria usar o carro, então depois de discutirem sobre qual seria o número da ambulância, ligam 190 mesmo. Pedem para encaminharem a ligação. Não encaminharam, mas deram o número. Era 192, 192 o número.

- Ah, então era 192.

A ambulância chega depois de meia hora. Numa cadeira em algum dos cantos do supermercado, espera. Os clientes não veem. Tudo passa normal. Passa compra, passa dinheiro, passa pé, braço, pessoa inteira, tudo passa, menos Maria, coluna envergada, semi-morta e escondida. Os socorristas chegam, levam-na. Olhos curiosos se detêm na ena. Várias cabeças ao redor da ambulância.

Foi acidente? Foi bala? Morreu de que? Escorregou. Bateu a cabeça na pia do banheiro. Ataque cardíaco. Só queda de pressão, não tô dizendo?

A ambulância vai. As pessoas se dispersam. Vão todas para casa falar sobre uma mulher que morreu talvez de, talvez porque, talvez por causa de. O banheiro ficou um tempo trancado. Depois o próprio gerente mandou reformar porque uma vez teve que usar e aquela imundície lhe deu nos nervos.

Os colegas de trabalho souberam depois. Tinha se matado, mesmo tão jovem e tão... não sabiam adjetivar. Tão o que? Tão simpática? Sim, o rosto tinha simpatia, não é?

- Triste, né? - Escaneia outro código de barras, fecha o valor - 42 reais.

- No cartão.

- Crédito ou débito?

- Débito.

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