Um amigo morre - Parte I


        A noite envolvia-me com a fria névoa da floresta. Era meu momento de vigília e no silêncio que me rondava, meu pensamento rememorou uma antiga conversa com Douglas.
            – Você não pode abster-se de alimento. Como viajará sem ser notada?
            – Como sempre viajei até agora.
            – Mas não é seguro contar com a sorte.
            – Sorte, Douglas? O que é isso? – eu ri – Você acha que agora, mais do que antes, creio na sorte?
            – Não quis dizer isso, minha amada.
            – Agradeço pela preocupação, Douglas. Sei que suas intenções são boas e sei o quanto tem feito por mim, mas peço que não se preocupe. Desde que Bertrand deu-me este martírio, tive que criar novos comportamentos e aperfeiçoar outros. Hoje, sei que consigo ser mais discreta do que meu criador um dia foi, sem, contudo, deixar de manter-me.
            – Desculpe-me novamente.
            A imagem daquele senhor de cabelos brancos, pele fina e artérias que já bombeavam com dificuldade não me saia da memória. Há anos aquele homem acompanhava-me, protegia-me. Ele, que fora um dos que me acolheram como agora sou. Ainda não creio que foram, exatamente, esses anos que me tiraram meu amigo querido.
            Desde então, carrego comigo seu último pedido. Ele o roubou de Thompson, naquele derradeiro dia e o manteve consigo. Agora o tenho, o diário de Richard, e tudo o que secretamente ele observou em suas viagens. Richard... Douglas... Meu passado está esvaindo-se de vez.

***

            Ela aproximou-se sorrateira. Não demonstrei, mas podia vê-la por entre as árvores e ela sabia disso. Sempre discreta, como seu fado a exigia.
            Lembrei-me de quando vi seu tipo pela primeira vez. Fora algo que a noite revelara-me e, com o passar do tempo acostumei-me com seus olhos amarelo-esbranquiçados e o desenho de seus corpos escondidos pela penumbra.
            Renael parou a três árvores de mim e esperou. Não me movi, contudo, observava-a. Criamos um respeito mútuo desde minha escolha. Creio que sua aproximação iniciou-se pela curiosidade. Eu não era algo que os ceifadores costumavam esperar.
            O momento mais escuro chegava e decidi sair de meu posto. À esquerda de onde estava havia um caminho que descia a colina. Como não podia deixar meus companheiros desprotegidos, virei-me para adentrar a caverna e chamar quem me substituísse.
            – Vá! – disse Daemy, que já estava às minhas costas. – Senti a aproximação dela... Vá!
            Sorri e segui meu caminho, descendo a colina. Sentia os olhos de Renael sobre mim. Entrei na floresta e deixei a escuridão cercar-me.

***

            – É hora de alimentar-se? – a negra de olhos amarelos e longos cabelos cacheados aproximou-se. – Continua sua dieta?
            – Não podemos apartar-nos de quem somos.
            – Você tem uma determinação encantadora! – sorriu Renael – Ainda não entendo como você consegue conter seu ímpeto...
            – Na verdade, não posso conter por muito tempo. Meu corpo exige-me meu real alimento... Mas posso distrair meu desejo.
            – Então, sua dieta não é restrita a sangue frio? – disse a ceifadora, aproximando-se mais.
            – É preciso ter contatos para conseguir sobreviver em nossos dias. – meu corpo já ansiava alimento – O tempo muda e temos que nos adaptar, mas agora devo pedir-lhe licença.
            – Vá! Há corsas perto do lago e um moribundo tuberculoso numa aldeia a duas léguas daqui. Você escolhe!
            Dei-lhe as costas e segui mais fundo pela floresta. Meu corpo pedia o homem e minha consciência, o animal.

***

            Renael esperava-me ao pé da colina, à sombra das árvores.
            – Não fique com esse peso. Você ajudou uma alma perdida.
            Não respondi, meu pesar não permitia.
            – Algum dia, você terá que se acostumar. – prosseguiu ela. – Sua longa existência exigirá isso.
            Entrei na caverna onde pernoitamos.
            – Agora você está pronta para seguirmos viagem. A coloração viva de seus olhos diz-me que, hoje, você estará mais disposta. – disse Daemy.
            – Não se culpe. São necessidades que devem ser supridas. – posicionou-se Flourbe. – A senhorita não causou mal a ninguém.
            Segui para o lado mais escuro da caverna e lá fiquei, só.

***

            Desde que me tornei o que sou, busco meios de conviver com os mortais. Entendo seu sofrimento, pois fiz questão de não me esquecer de meu lado humano. Entretanto, também relembro a necessidade que o homem carrega de saciar sua vaidade e ambição. O desejo de ser imortal somente é ansiado por quem não sabe o peso que este fardo traz.
            Lembro-me, mesmo em todos esses anos de trevas, do momento em que despertei no lar de Bertrand. Lembro-me dos sons estrondosos, que meus ouvidos supersensíveis captavam; do gosto do sangue, quando me alimentei pela primeira vez; da necessidade incontrolável de saciar o insaciável.
            Água para um morto de sede. Fogo torturável para o meu querido Inferno. A voz da demônio invadiu minha mente. Olhei-a com reprovação.
            – Seu pensamento é tão alto e pesado que parecem gritos desesperados de alguém em um lugar abafado.
            – Seja mais delicada com nossa amiga. – retrucou nosso companheiro de viagem.
            Permaneci em silêncio e apressei meu passo, acompanhando, agora, nossa guia. Ela olhou-me e sorriu. Aquela senhora, com seus quase sessenta anos, curvada e de cabelos brancos, era mais atenta que muitos soldados treinados. Não confiava totalmente nela. Algo, que não saberia dizer naquele momento, não me agradava. Agora sei que era um peão de dois reis. Pobre mulher...
            Seguimos pela margem do rio, desviando à esquerda e chegando à cidade por sua entrada lateral. Pegaríamos o trem das sete horas da noite, partindo para leste. Nossa viagem continuaria por meses em terra e água. Quem desejávamos encontrar não estava no continente.

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