Cotidiano do absurdo

Há alguns anos eu dava aulas no interior, em cursinho. Viajava geralmente às sextas e as aulas ocorriam no sábado. Em uma das viagens, que sempre mudavam de cidade conforme mudava o módulo, fui para Itarema. No último dia de aula, ou seja, no quarto sábado do mês, decidi com a turma que iríamos conhecer a reserva Tamar e outros espaços do lugar. Conversamos sobre patrimônio, natureza e cultura. Um dos pontos foi a questão indígena, já que almofala é território historicamente ligados aos povos Tremembé. Alguns alunos estavam muito indignados com o fato de eu defender que as terras indígenas fossem preservadas e demarcadas, respeitadas e cuidadas por esses povos.

Os argumentos partiam sobretudo da (des)legitimação e contestação da identidade indígena, questionando os comportamentos dos Tremembés da região que não “eram coisa de índio”. Segundo as pessoas que comigo conversaram ser é índio é viver no mato, não usar celular e falar língua de índio, assim como se vestir “a caráter”. Eu fiquei estarrecida, mas continuei o diálogo, comentando que vivemos processos de colonização, onde diferentes grupos indígenas entraram em contato com outras formas de viver e pensar, com outras características culturais dos povos colonizadores. Lembrando que esse processo de contato foi extremamente violento e genocida, um processo de eliminação, assassinato, anulação e inferiorização daquilo e daquelxs que não eram europeus, brancos e cristãos. Tentei ressaltar que o tempo e as experiências provocam inúmeras mudanças, sejam elas negociadas, voluntárias, violentas, enfim… isso requer análise e estudo, diálogo e compreensão. Não podemos entender os processos históricos como quem ler jornalecos e revistas sensacionalistas e acha que sabe tudo. 

Escrevo isso porque hoje vi comentários muito problemáticos e preconceituosos. Tenho um colega de trabalho que é da comunidade do Cumbe, em Aracati. Historicamente ligada a raízes e tradições de quilombolas, a comunidade é alvo de grupos empresariais ligados a exploração e destruição ambiental. Por mais difícil que isso possa parecer, ou não, algumas pessoas da comunidade passaram a atacar aqueles e aquelas que se reconhecem como quilombolas e defenderem abertamente os interesses desses grupos empresariais. O xingamento vai desde #XôQuilombola a não aceitação dos sujeitos que decidiram viver outras experiências. O meu amigo de trabalho está tendo sua negritude e identidade quilombola contestada porque decidiu estudar Letras e ser professor em Fortaleza. Uma das maiores lideranças do Cumbe está sendo perseguida sob a acusação de que só “vive em Fortaleza”, que não é quilombola, se não estaria no mangue. Na concepção dessas pessoas, pra ter a identidade negra e quilombola é preciso trabalhar no mangue e viver isolado na localidade. Ainda escreveram comentários inferiorizando a identidade e beirando o absurdo preconceituoso de fazer piada de escravidão e quilombolas. Chegaram ao ponto de contestar e ser contra a demarcação das terras. 

Querer determinar quem é indígena, negrx, quilombola ou qualquer outra identidade é uma pretensão semelhante a de colonizadores, que definiram por muito tempo o que esses povos eram ou deixavam de ser. E essas definições sempre foram muito perigosas. As definições nos fazem cair no preconceito, nos xingamentos, nas piadas racistas e todo o tipo de manifestação que podem ferir as identidades das pessoas.

Exigir que uma pessoa ou grupo tenha as mesmas características de seus ancestrais de 500/400/300 anos atras é ignorar que as coisas mudam, que a cultura muda, é fechar os olhos para todos os povos que morreram no passado por atitudes que são, no mínimo, parecidas com esse cotidiano absurdo de querer definir e determinar o outro.

Vivemos tempos muitos difíceis e os discursos conservadores e reacionários ganham força e legitimidade. Fazer piada com escravidão e quilombolas, defender interesses de grupos milionários que só destroem os espaços que exploram, perseguir lutadores e querer determinar o que uma pessoa negra e quilombola precisa fazer para ser considerada como tal. Tudo isso de pessoas que nem sequer se reconhecem como tais. É impressionante a nossa incapacidade de compreensão, de respeitar as diferenças, as tradições e raízes das comunidades tradicionais. A colonização foi um processo tão forte que ainda hoje carregamos discursos de eliminação e negação de grupos que historicamente já foram eliminados e inferiorizados. É preciso descolonizar. E isso é urgente!

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