Um triste reencontro - Parte III


           Saímos do quarto de Ângela e Daemy e descemos as escadas, seguindo em direção à biblioteca. Quando chegamos ao meio do corredor, Lishva parou e virou-se para Flourbe.
            – Querido amigo, você sabe que cumpriu seus trabalhos nesse plano. – o homem encarava-a, silencioso. – Você seguirá comigo, meu amado.
            – Sabia que esta hora chegaria. – disse Anthonie, engolindo em seco as palavras que pronunciava. – Minha esperança humana fez-me crer que o momento da despedida se arrastaria eternamente.
            Estava estupefata com aquele diálogo. O que significaria? Meu mentor me abandonaria no fim da batalha? Minha mente não conseguia processar essa informação. Meu corpo contorcia-se internamente. A dor de todas aquelas perdas já era sufocante, mas, ainda assim, não tinha forças para reagir.
            Vi a necromante aproximando-se de meu amigo, até quase abraça-lo. Foi algo rápido até para mim... Talvez todas as emoções que me circundavam tornaram minha percepção turva... Quando me dei conta do que acontecia, Flourbe estava estendido no chão. Meus olhos, cheios de lágrimas incontroláveis, desviaram-se dele para a mulher.
            Lishva já estava seguindo para a biblioteca. Deixei-me ficar, sentindo meu corpo e minha mente afundarem-se naquela escuridão que me cercava. A necromante entrava na sala onde meu fim esperava-me.

***

            Superando minha paralisia, atravessei o que restava daquele longo corredor. Conforme me aproximava das portas fechadas que me separavam de meu maior inimigo, senti crescer em meu peito um fogo de última esperança. Poderia derrotar meu criador? Aquela mulher, a qual me tirara meu último e valoroso amigo, me ajudaria no final?
            Dei-me alguns segundos diante da porta, deixando aquele sentimento tomar posse de mim. Sabia que, quando me possuísse, poderia atuar com imparcialidade e sabia, também, que aquela chama traria outro sentimento ao meu peito... Vingança...
            – Você vai ficar aí fora a noite toda? – uma voz que me causava arrepios tirou-me de meu frenesi... Bertrand, pensei... – Entre! Todos lhe esperavam...
            A porta abriu-se e a figura daquele homem loiro, alto e profundamente alvo surgiu em minha frente. Seu rosto, com olhos fixamente profundos e um maxilar bem desenhado, não era totalmente fiel a imagem que minha mente possuía. Talvez a ira e o desgosto tenham distorcido minha percepção de meu criador.
            Seus olhos seriam encantadores para qualquer mortal, mas já os conhecia como realmente são, desde que me lembro de ver aquele rosto após meu despertar.
            Sua voz rouca era encantadora se, assim, ele desejasse-o, como o era naquele momento à porta. Aquele som causava em mim algo que não desejava... Uma memória que queria apagar... Bartholomeu...
            Movendo-me tremulamente, venci a imobilidade inicial que aquela situação causara-me. Adentrei aquele recinto e me pareceu que não mais o reconhecia, mesmo depois de tantos anos vivendo ali.
            A sala era escura e a luz que vinha da lareira era fraca. Lá fora, a noite era um breu tal, que nem as estrelas ousavam mostrar-nos seu brilho. Ainda assim, pude vislumbrar quem estava presente em minha execução. Lishva e a menina estavam confortavelmente sentadas no sofá.
            Senti quando a mão de Bertrand tocou-me pouco acima do quadril. Um arrepio percorreu meu corpo... Uma conversa encantadora surgiu em minhas lembranças. Momentos de tranquilidade e alegria. Deleitando-me com o belo sorriso daquele ser noturno... Olhei-o e vi que sua mão direita indicava-me uma poltrona. Ele levou-me até ela e sentei-me.
            – Esta habitação lembra-me os anos em que nos conhecemos... – disse o vampiro, caminhando até a lareira. – Uma encantadora jovem, mais interessante que a esposa de minha presa... Uma caça que me rendeu um belo prêmio... Uma encantadora noiva...
            Bartholomeu Bertrand, um nobre encantador e bem instruído, herdeiro de um condado das gélidas terras nortenhas. Foi transformado por sua meia-irmã, Maldiva, antes da destruição do reino por impérios inimigos. Depois de inúmeras fugas e esconderijos, pode voltar ao seu castelo.
            Sempre rodeado por jovens de sangue azul e por iludidas humanas, meu criador causava-me um misto de admiração e repulsa. Estava encantada, naquela época, com as possibilidades de meu novo eu, mas o lado humano, que ainda mantinha em mim, sentia medo de perde-lo em suas aventuras.
            Olhava-o à sombra das chamas e minhas memórias brotavam sem controle. Aquele homem, meu criador, meu noivo exercia um controle inconsciente sobre mim e ele sabia disso...
            Lendo meu rosto e percebendo o que claramente passava-se, ele voltou a ficar ao meu lado, sentando-se no braço da poltrona onde estava. Sua mão pousou em meu ombro, lembrando-me de quando me protegia... Daquela época longínqua em que nos amávamos.
            – Com certeza, você lembra-se de quem você tirou-me... – disse ele, com uma voz obscura, que se fincava em minha mente e peito como adagas afiadas. – O que você não sabia é que ela era uma bruxa antes de ser transformada. Minha amada irmã e sua nova amiga são duas faces da mesma pessoa. – seus olhos vermelho-vivo eram frios e profundos, e arrastavam-me para uma escuridão devastadora.
            – O... O quê? – aquilo me deixou zonza.
            – Antes de transformar-me totalmente, consegui entrar em um círculo mágico e realizar um feitiço de separação de corpos. – disse Lishva, rompendo seu silêncio. – Aquela que você matou era a vampira Maldiva, com toda sua vivência da noite. Eu vivia na floresta, escondendo-me dos olhos comuns e continuava sendo a mesma... Nós éramos interligadas, como a anjo e a demônio que você tinha como companheiras...
            – Mas... são diferentes... – minha memória falhava novamente?
            – Lishva é a imagem de minha irmã antes da transformação. – esclareceu-me Bertrand. – Maldiva era a figura transformada, a personificação da beleza vampírica.
            Estava pasma...

***

            Sabia como meu pai era, mas não acreditava que ele poderia fazer aquilo com minha mãe.
            Enquanto ele e aquela mulher necromante explicavam quem ela era, Bart posicionou-se nas costas de Susy e, em poucos segundos, os olhos angustiados e desorientados, da única mulher que eu conhecia como mãe, deixaram de luzir o filme que nos leva a morte.
            Aquilo aniquilou-me, mas não gritei, não esbocei reação. Meu único pensamento dirigiu-se aquele que me roubara e me criara... Bartholomeu Bertrand...
            Minha ira atingiu-o como uma flecha. Não, como uma estaca cravada no coração de um vampiro. Ele caiu estático.
            A mulher Lishva correu para ele, em prantos. Antes que o alcançasse, uma das janelas de vidro quebrou-se e um estilhaço rasgou-lhe o pescoço. A necromante parou e, girando o corpo em minha direção, olhou-me fixamente. Seu corpo estava totalmente perfurado pelos pedaços de vidro e, para o seu infortúnio, o amuleto de Anthonie Fourbe estava comigo, desde o momento em que ela entrou naquela sala e eu, curiosamente, pedi para vê-lo. Ela caiu e seu sangue cobriu o tapete persa.
            Observei cautelosamente a cena. Aquele sangue e aqueles corpos, a lembrança de todos os momentos tristes que aconteceram, as perdas de todas as pessoas que me viram mudar e crescer. De todos que morreram naquele dia, a única da qual sempre sentiria falta seria Susan Harks, a única mãe que conhecia.
            Ela já me adiantara aquele fim, o que meu pai faria e a solidão que eu sentiria depois que tudo tivesse terminado...
            Tirada do meu lar ainda muito nova, enclausurada e transformada por Bertrand, mas compreendida e aconselhada apenas por Susy. Sou uma vampira em desenvolvimento, uma criatura da noite... Agora, sozinha neste mundo...

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