Faminto




  “Há eras atrás, antes do mundo ser dividido em dois, uma entidade caminhava pelas planícies do ártico, caçando qualquer coisa que se movesse, implacável e insaciável. Por onde ele passava, deixava um rastro de frio, penúria, desespero e morte. As tribos locais passaram a fazer oferendas, sacrificando os seus para aplacar a fome do Deus e evitar sua fúria. Depois que o mundo partiu-se e o Andarilho do Vento não podia mais alcançar os mortais, as tribos humanas proibiram qualquer rito que fizesse referência a entidade e caçaram todos aqueles que o cultuavam. Seu nome se tornou um tabu entre os povos do norte. Sua mitologia, apagada. E assim, os homens do frio enterraram seu nêmesis sob a neve do polo norte.”


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Petyr comeu uma barra de chocolate antes de descer do carro. O motorista havia combinado de deixá-lo no limite da estrada. Não poderia ir mais longe, o carro não era adaptado para um clima tão frio. Por sorte, seu contato já estava esperando no local combinado, com um trenó guiado por cães. Ótimo. Ele imaginava que teria uma viagem incomum, mas não esperava que fosse sacolejar pela neve de outono.

O investigador demorou um pouco mais para descer do carro. Decidiu que apreciaria sua barra de chocolate antes de ter que submeter-se a uma dieta a base de proteína. Mordia pequenas porções do doce, saboreando o açúcar, a textura cremosa, os pedaços de amendoim que recheavam o snack. Ao fim, tomou um gole d’água para tirar o excesso de açúcar da boca, respirou fundo, cobriu boca e nariz com a proteção de sua roupa de frio, colocou seus óculos e finalmente abandonou o carro.

“Seja o que Deus quiser.”

Ao descer do carro, Petyr viu seu contato acenando, indicando que ele teria que andar até lá. Ele odiava andar sobre a neve. Era como andar sobre areia fofa, só que pior, porque seu pé literalmente afundava. Uma caminhada de cinco minutos durava o dobro do tempo, e deixava o corpo exausto como se tivesse caminhado por uma hora. Isso, junto ao frio que conseguia penetrar aquelas botas de couro e fustigar a pele, tornavam a atividade de andar uma verdadeira provação.

E naquele dia, o frio estava particularmente avassalador. Cada rajada de vento mais parecia um golpe de faca cortando a roupa de frio e rasgando a carne. Aqueles eram os ventos de outono do Alasca: secos, cortantes e nada convidativos. Os moradores daquelas regiões evitam fazer viagens nos meses frios; estocam suprimentos e mantém-se dentro de suas casas o máximo possível, pois o inverno no centro do Alasca é cruel e nada piedoso.

Infelizmente, Petyr não tinha escolha.

—Malik. - Petyr cumprimentou seu colega.

—Petyr, - respondeu Malik – é bom vê-lo por aqui novamente, velho amigo. Pena que seja numa situação tão ruim.

Malik entregou-lhe botas de neve, ao que Petyr agradeceu de forma eloquente. Descendente dos Inuit, Malik era um homem grande, na casa dos quarenta anos, que tinha um ar estranhamente simpático para o seu porte físico. Era o delegado local, responsável por manter as reservas indígenas livres de invasores, manter a paz entre os diversos povos nativos que ocupavam aquelas terras, e também coibir os caçadores ilegais. Na maior parte do tempo, Malik era um conciliador, resolvendo pequenas rixas entre tribos locais e descendentes dos colonizadores, que vieram ocupar estas terras em busca dos incentivos que o governo dá para quem quiser ocupar um espaço aqui. O fato da taxa de homicídio se manter baixa deve significar que ele está fazendo um bom trabalho.

Os dois subiram no trenó e Malik fez um comando com as guias, colocando os cães em posição. Com um segundo comando, os cães partiram, arrastando o trenó junto. Malik avisou que eles teriam que fazer uma parada em certa altura para alimentar e deixar os cães descansarem. Ele teria trazido o carro, mas como o clima da região tem mudado subitamente, era mais seguro confiar nos animais.

—Petyr, eu sinto muito pela sua irmã. Espero que consigamos encontrá-la logo, e que ela esteja bem.

—Quando foi que você falou com ela pela última vez? - Questionou o investigador, tentando desviar-se da condescendência do amigo.

—Anteontem. Falei com ela pela manhã, quando me informou que a equipe resolveu adentrar a floresta para chegar até esse acampamento que descobrimos no mês passado. Eu pedi para ela não ir sem um guia, e que eu mesmo iria guiá-los se ela esperasse por mais um dia, mas você sabe como sua irmã é impaciente. Marie contratou um cara chamado Kootoni, um caçador local. Foi ele quem avistou esses caras pela primeira vez e me informou sobre a existência dessa aldeia escondida na mata.

“Marie saiu com a equipe e o Kootoni nas primeiras horas da manhã. Mantivemos contato por rádio-satélite até o meio-dia, mais ou menos. Depois disso, só estática. Montei uma pequena equipe de busca ontem, logo após ter entrado em contato com você. Vasculhamos as imediações da floresta, mas não encontramos sinal nenhum. Hoje, pretendemos adentrar a mata, mas queria que você estivesse aqui. Afinal, é sua irmã.”

—Eu agradeço a consideração. - Disse Petyr, e calou-se pelo resto do caminho.

A paisagem da região sub-polar do Alasca era ao mesmo tempo majestosa e opressora. O branco da neve sobrepujava todas as outras cores, e suprimia até mesmo a luz solar. A floresta, ao longe, parecia com uma montagem de árvores iguais, pinheiros e outras coníferas, confeitadas de neve, com seus galhos simétricos pesados com tanta água condensada. Adentrando a visão, era possível ver o Monte de Sila, um pico de 3km de altitude, encoberto pela neve e pelas nuvens. Pouquíssimas pessoas aventuravam-se por aquelas paragens; mesmo com uma baixa altitude, o histórico de acidentes e desaparecimentos naquela montanha eram altos, o que inclusive rendeu uma fama de mal-assombrado ou amaldiçoado pelos moradores locais. Lendas de criaturas mitológicas habitando o Monte são histórias comuns em rodas de caçadores.

Eles fizeram a pausa e Malik começou a alimentar os cães. Petyr notou que seu próprio estômago estava reclamando. “Nossa, mas aquela barrinha de chocolate não deu pra nada mesmo…”. Ele pensou no que teria para ele no vilarejo de Malik. “Provavelmente ensopado de baleia ou de foca. Que seja foca, por favor.”

Malik, aproveitando que o vento havia parado, puxou um charuto. Acendeu com um isqueiro e começou a tragar. Petyr se aproximou do amigo, que ofereceu um trago.

—Me fala um pouco sobre essa aldeia que a Marie tava investigando.

—Bom, - começou Malik – foi o caçador que eu te falei, o Kootoni, que achou eles primeiro. Diz ele que estava caçando nas bordas da floresta quando ouviu uma voz chamar seu nome. No começo, ele achou que era algum tipo de alucinação causada pelo frio e pela fome. No dia seguinte, no entanto, ele ouviu novamente, e também viu vultos. Decidiu adentrar um pouco na mata, até ver algumas pessoas entre as árvores. Ele tentou contato, mas elas fugiram. No mesmo dia, ele me contou o que havia acontecido e eu organizei uma patrulha para adentrarmos a mata. Passamos dois dias procurando estas pessoas, até que topamos com a aldeia, numa região onde eu nunca tinha ouvido falar de qualquer tipo de ocupação nativa até então.

“Aliás, chamar aquilo de aldeia é aumentar demais o tamanho da coisa. O número total de habitantes não deve ser maior que 50. Ao chegarmos lá, nós os encontramos vivendo à moda antiga: grandes barracões feitos de peles, com fogueiras espalhadas por todo lugar. Eles vestiam peles de alce, forravam seus barracões com peles de alces e ursos, iluminavam tudo com lamparinas de óleo feitas de forma artesanal. Nem meus avós usavam esse tipo de coisa.”

“Mas o que me chamou mais atenção foi a aparência física deles. Parecia que todos estavam sofrendo com inanição. A pele ressequida sobre os ossos, olhos fundos e alguns apresentaram queda de cabelo. Todos eram muito magros, sem exceção, e alguns tinham sintomas de catarata. Também não vi sinais de caça ou qualquer tipo de estoque de alimento. Mas, quando perguntei a eles se estava tudo bem, eles responderam que sim, estavam melhores do que nunca. Fiquei preocupado.”

“Andei por várias aldeias e comunidades nativas e perguntei a eles se conheciam alguma tribo que morasse no coração da floresta. Alguns anciãos me encararam como se eu estivesse falando alguma blasfêmia ou obscenidade. Em suma, os xamãs não só me disseram que não conheciam qualquer tribo que habitava aquele local, como também afirmaram que esta floresta é um local proibido para qualquer tribo. Se alguma aldeia se instalou ali, com certeza não era uma tribo, mas um grupo de desgarrados, o que até faz sentido devido ao tamanho reduzido de pessoas e o estado precário no qual eles se encontram.”

“Por fim, decidi entrar em contato com o governo para organizarmos uma missão de resgate daquelas pessoas. Foi quando sua irmã me ligou para fazer a avaliação da real situação desses caras. O resto, você já sabe.”

—Malik… Como estas pessoas chamaram o Kootoni pelo nome, se ele nunca os viu antes?

—Particularmente, eu acho que o Kootoni realmente delirou. Até porque ele me falou uma coisa bizarra quando me contou essa história toda.

—E o que foi?

—Bom… Ele disse que a voz que chamou seu nome não era de nenhum aldeão, mas sim da sua esposa, que faleceu a uns cinco anos atrás.



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Kootoni…

Kootoni…

Me ajude, Kootoni… Eu preciso de você…

A voz já não pairava no ar, como se fosse falada por uma boca. Ressoava dentro da cabeça. Não adiantava tapar os ouvidos. Mesmo que furasse os tímpanos, ele sabia que continuaria ouvindo… e ouvindo… e ouvindo…

Kootoni...

Ele segurava-se para não tremer. Escondido atrás de uma árvore, ele tentava ficar imóvel, mas era difícil. Além da voz torturante em sua mente, havia a fome que não cessava. Seu estômago rugia como uma fera enfurecida, se contorcia dentro dele. A dor era intensa, não o deixava pensar. Sentou-se e resolveu acalmar-se. Mas a fome, o frio e a voz na sua cabeça faziam da simples tarefa de permanecer em silêncio uma provação digna de Hércules.

Ele respirou fundo. Expirou. Repetiu o processo. Finalmente conseguiu focar sua cabeça no ambiente ao redor. Estava ao ar livre, escondido atrás de uma árvore, diante de um morro. Espiou um pouco por detrás do ombro e viu a caverna onde estava preso, minutos atrás. Seus batimentos aceleraram um pouco e ele perdeu o foco brevemente. Voltou a praticar a respiração. Foi lentamente, recuperando o parco controle.

E então ele ouviu um som sutil vindo de cima.

Ele não queria virar a cabeça para olhar. Ele sabia que qualquer movimento o denunciaria. Ficou o mais imóvel que lhe era permitido, concentrou todas as suas atenções na sua respiração, deixando ela o mais lenta e compassada possível. Inspirava. E expirava. Devagar. Sem excitação.

Pois qualquer movimento brusco chamaria atenção do monstro que estava na árvore, acima de sua cabeça.

Ele não teria chances contra aquela… criatura… mesmo que estivesse armado. De mãos nuas, enfrentá-la era suicídio. O melhor que ele podia fazer era usar sua cabeça, sua esperteza para sobreviver. É isso que se faz no Alasca, afinal. Humanos usam a inteligência para sobreviver.

Infelizmente, o máximo que ele conseguia fazer era ficar imóvel, e até isso demandava uma esforço. A roupa já não segurava o frio. A voz de Aniuk, repetindo o seu nome de forma incessante, era demais para que ele pudesse pensar em algo. E havia o aguilhão da fome, uma fome que jamais sentira antes. Era como se seu estômago quisesse devorar o resto do seu corpo…

Isso começou a parecer uma boa ideia, na verdade. Talvez uma pequena parte da mão. A parte mais carnuda, próximo ao dedo mínimo. Depois, quando encontrasse ajuda, ele poderia curar a mão, e esse pequeno sacrifício teria valido a pena.

Kootoni tirou sua luva. Observou a sua mão. A palma, com seus diversos traços esotéricos, apresentava pequenos filetes azuis, vasos sanguíneos que, naquele momento, tentavam irrigar aquele membro com sangue quente. O caçador ficou pensando em seu próprio sangue quente, jorrando em sua boca, enquanto mexia a mão diante do seu rosto. Flexionou os dedos, para manter a circulação. Seus olhos foram fixando cada vez mais a atenção naquela parte carnuda, abaixo do dedo mínimo. Sua língua umedeceu os lábios. A mão estava mais próxima da boca, cada vez mais…

E foi a dor da mordida que o tirou desse devaneio louco.

Ele tentou não gritar. Olhou para cima, bruscamente, esperando que o monstro estivesse descendo sobre ele agora, todo dentes e garras mas, surpreendentemente, não havia nada ali. Respirando pesadamente, ele vasculhou os arredores, sem vez sinal da coisa. Provavelmente, havia voltado para a caverna. Kootoni olhou novamente para sua mão. O estrago não fora tão grande, mas ele não poderia ficar sangrando naquele frio, ou a mão congelaria e ele teria que amputá-la.

Kootoni rasgou um pedaço de sua camisa e enfaixou a mão ferida. Temeroso, deu seu primeiro passo em direção a mata fechada. Então vieram mais passos, sempre cautelosos, e ele foi se afastando cada vez mais, até que a entrada da caverna só pudesse ser vista nas suas lembranças.


Continua com a segunda parte - Wendigo


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