A Coisa no Fosso - Parte III




O Fosso


Cláudio desceu as escadas que levavam à galeria sem nenhuma pressa. A cada degrau que descia, ele se demorava apreciando a luz da lua. Ele sabia que, assim que botasse os pés no chão espúrio daquele esgoto, ele teria que se esforçar para lembrar-se de como a luz parecia.


Ele teve o cuidado de deixar a entrada da galeria aberta. Mesmo assim, não conseguia vê-la. A escuridão era tão forte que parecia uma camada de alguma coisa densa, uma fumaça escura, quase sólida, que cobria toda a sua visão.


Cláudio via em tons de cinza. Mesmo acreditando que era inútil, acendeu a lanterna, colocou as luvas, o capacete e engatilhou sua arma. Para seu espanto, a luz da lanterna estava lá. Um facho cinzento, cortando as trevas, mostrando-lhe a direção.


Como tinha que segurar a espingarda com ambas as mãos, resolveu ligar a lanterna do capacete. Mais uma vez, a luz estava lá. Ele caminhava com cautela, pé ante pé, esperando encontrar um monstro em cada esquina.


Mas o que ele encontrou foi ainda pior que um monstro.


Ao virar na esquina onde deveria haver o Fosso, o que ele encontrou foi um novo corredor. O espaço estava completamente distorcido: para ir para frente, ele tinha que caminhar para trás, para ir para a esquerda, ele deveria subir. As direções eram completamente incompreensíveis. Quando ele finalmente resolveu seguir, notou que, em dado momento, caminhava na vertical, contra a gravidade. Em outro momento, parecia que ele caminhava sobre o teto, de cabeça para baixo.


Ele virou a esquerda. Viu se de pé, novamente no chão, como deveria ser. Por um momento, respirou aliviado. Mas apenas por um momento.


Cláudio identificou ao longe um objeto que, ele tinha quase certeza, era um cadáver. Ele foi se aproximando devagar, usando a luz da sua lanterna para focar no corpo. Não havia cabelos. O rosto, ou o que restava dele, indicava um homem, próximo aos sessenta anos, com queixo fino e rugas próximas ao pescoço. Até onde podia ver, o homem não tinha mais nada abaixo do ventre. Suas vísceras estavam espalhadas pela lama, misturadas com fezes, urina e toda a sorte de outros tipos de secreções humanas, fazendo uma sopa intragável para qualquer criatura viva.


Ou quase qualquer criatura viva.


Foi só se aproximar alguns passos, que ele notou o peito do cadáver. Estava pulsando. Não como se o coração dele estivesse batendo. Longe disso. Era como houvesse alguma coisa dentro do peito dele, brigando, lutando para sair. A cada pulsar, o que quer que estivesse dentro dele vencia mais uma barreira, se aproximava mais um pouco da liberdade…


Foi quando o cadáver abriu os olhos.


O branco dos olhos era negro, completamente negro. Sua íris era vermelha, e a pupila era negra também. O olhar daquele homem, daquela coisa morta, penetrara nos seus olhos com uma violência tão mordaz, que a única coisa que ele conseguia fazer era ficar parado. Havia um vazio profundo atrás daqueles olhos, como se ele contemplasse o próprio espaço sideral. Uma escuridão terrível e infindável, onde a única certeza era a sua insignificância diante da imensidão das trevas.


A boca do cadáver escancarou-se, e um grito ensurdecedor fez não só os tímpanos, mas as próprias paredes da galeria estremecerem.


Foi quando o corpo explodiu em pedaços.


Ratos. Milhares deles, saindo sem parar das partes daquele resto humano. Havia pedaços de carne, osso, fibra e sangue espalhados por todo o corpo de Cláudio, que havia caído na lama quando o morto explodiu. Os ratos continuavam surgindo, infinitos, como se o cadáver do velho realmente encerrasse um universo dentro de si.


As criaturas eram repulsivas. Alguns não possuíam pelos sobre partes de seus corpos;era possível ver a carne branca e bulbosa do rato, como se mais ratos estivessem dentro deles, fazendo o mesmo processo de rompimento, tentando sair de dentro deles.


Quando finalmente eles pararam de surgir, Cláudio já estava de pé. Ele recuava devagar para não chamar a atenção dos animais, mas o cheiro de morte em seu corpo já os atraíra. As criaturas também se aproximavam devagar, guinchando pouco, não querendo assustar sua provável janta…


Como se Cláudio já não estivesse assustado o suficiente. Era hora de correr.


E Cláudio correu. Muito. E ainda sim os ratos o alcançava. Eles eram mais leves, e estavam acostumados a correr sobre a lama do esgoto, muito mais do que o velho supervisor. Mais do que isso: os ratos andavam por caminhos que Cláudio não conseguia ver ou perceber. Eles viravam em direções inexistentes, adentrando dimensões espaciais que seus sentidos não alcançavam, fazendo com que as leis da física que regem o universo significassem quase nada para eles.


Cada vez que um rato mordia-lhe os pés, as mãos, as orelhas, era como se pregos quentes fossem martelados na sua pele. Ele gritava de dor, de medo e desespero, mas não parava de correr. A única coisa que ele podia fazer era continuar correndo e arrancando os ratos do seu corpo, eventualmente levando nesgas de sua própria carne junto.


Cláudio já não sabia mais o que fazer, quando uma forma humana surgia à frente. Era uma forma humana feminina. Estava nua, com sua pele alva contrastando com as sombras ao redor. Toda a brancura daquele corpo era doentia. Mas o pior era aquele sorriso maligno, branco, que zombava do desespero daquele homem.


Era a enfermeira. A mulher da rua. A moça de All Star.




Ela esticou o braço esquerdo, apontando para esta direção. Ele havia compreendido. Ao chegar até ela, virou abruptamente para a esquerda, adentrando um espaço que ele não havia percebido antes. Os ratos também não haviam percebido, e a enxurrada de roedores caiu sobre a enfermeira, dilacerando-a. Cláudio pôde ver os dedos da mulher voando pelos ares, tamanha a voracidade e violência com que os ratos se refestelavam. O som de ossos sendo triturados pelos dentes, as vísceras se espalhando pela lama pútrida, o corpo deixando de ser corpo para se tornar um monte de carne amorfa, onde criaturas que vivem da sujeira humana se baldeiam como num banquete.


Cláudio apenas assistia esse espetáculo bizarro. As lágrimas vertiam dos seus olhos sem nenhum esforço. Não eram lágrimas de pesar, medo ou loucura. Eram lágrimas de alívio.


Cláudio seguiu por aquele caminho, ouvindo os sussurros incessantes chamando seu nome. A cada passo dado, os sussurros se tornavam mais claros. O timbre da voz, a entonação do chamado, o ritmo. Era quase como um coro melódico. E a música tinha seu nome como letra.


Finalmente ele havia chegado ao Fosso.


Uma correnteza suave levava as águas para o nível inferior pelo escoadouro. Ali perto, o esqueleto enegrecido permanecia, coberto por aquela mesma substância vermelha viscosa que ele vira antes.


Cláudio ia se aproximando do esqueleto, quando este se contorceu, como se convulsionasse. O líquido vermelho se tornou mais denso, cobrindo quase todo o cadáver. Foi se adensando cada vez mais, tornando-se músculo e depois pele. Cabelo cresceu no couro cabeludo, olhos surgiram nas cavidades oculares, dentes brancos surgiram na boca.


Dentes muito brancos.

- Você?! - Disse Cláudio para a enfermeira.

- Nós.


Aquela voz era a mesma que ele ouvira nas poucas palavras trocadas anteriormente, mas também havia uma outra voz modulado por trás, criando um som duplo.

- Eu vi você ser devorada pelos ratos!

- Nós fomos devoradas. Mesmo assim estamos aqui.

- O que você quer comigo? - perguntou o supervisor, apontando sua espingarda para a mulher.

- Queremos apenas conduzir-lhe através do caminho. - respondeu ela sorrindo - Alguém espera ansiosamente para vê-lo.

- Eduardo?

- Eduardo.


A mulher-Coisa começou a caminhar na direção do Fosso. Cláudio à seguiu, ainda com sua arma apontando para ela. Ao chegar à beira do escoadouro, ela apontou para baixo.

- Desça. As respostas estão lá embaixo. E Eduardo também.

- Ele está vivo?

- Está mais vivo do que nunca.


Havia uma escada de ferro, usada para acessar ao nível inferior. Cláudio desceu as escadas, deixando para trás os últimos fragmentos do mundo que conhecia. Ele sabia que aquele lugar não era mais um fosso de esgoto, um escoadouro para despejo de águas residenciais. 


Aquele já era um lugar fora da realidade.


A única coisa distinguível eram os canos que conduziam o gás para as residências com este serviço. O resto era escuridão pura. O chão era feito de sombras; ele sentia o calor delas sob suas botas. Ele não conseguia mais mensurar as distâncias, como havia sido naquele dia, quando toda aquela loucura começara.


Um baque estalou-se atrás dele, e ao virar-se para trás viu o corpo da mulher-Coisa estatelado no chão, com ambas as pernas quebradas e torcidas de um jeito doloroso. No entanto, seu corpo foi se curando e regenerando, e em poucos instantes ela estava de pé, como se nada tivesse acontecido.


Um rebumbar, acompanhado de um pequeno tremor, soou através das imensidões negras. Ele sabia o que aquilo significava. 


Era hora do seu derradeiro encontro com a Coisa.


As vibrações se tornavam mais fortes à medida que Monstro se aproximava. Logo ele podia distinguir os braços disformes, arrastando um corpo descomunal, crescendo, se aproximando cada vez mais. Até que, por fim, ela não precisava mais se aproximar.


A visão da Coisa era apavorante. Seu corpo era elíptico, alongado como o corpo de uma imensa aranha bizarra. Dele, brotavam diversos membros, de todos os tamanhos possíveis, terminando sempre em mãos com cinco dedos, que si contorciam freneticamente. Um apêndice alongado, semelhante ao pescoço de uma girafa descomunal, se erguia da frente do corpo, e nele, anexado, havia um corpo humano.


Era Eduardo.






Ele estava nu. Não haviam pelos no seu corpo, exceto pelos cabelos na cabeça. Estava pálido; seus olhos arregalados e vidrados, e seu sorriso era uma caricatura maníaca. Eles estava pendurado por aquele estranho pescoço, que se ligava à ele pela coluna vertebral, fazendo Eduardo parecer uma estranha marionete humana.

- oI cLáUdIo. - Disse o Eduardo-Coisa, com uma voz dupla similar à da enfermeira.

- Oi, Eduardo. Oi, Coisa. Vocês estão… Diferentes.

- sIm, NóS eStAmOs. - respondeu o monstro - mAs FoI sUa MeNtE qUe NoS cRiOu EsSa FoRmA. é O jEiTo DeLa AcEiTaR e CoMpReEnDeR a NoSsA eXiStÊnCiA.


Cláudio afastou-se da criatura e atirou. A espingarda atingiu uma das patas-mãos do monstro, lacerando-a, espalhando pedaços de sangue e carne-sombra pela imensidão negra. A Coisa guinchou, com sua voz dupla, e se desequilibrou. Cláudio correu, procurando onde pudesse se esconder, mas tudo que ele via era um vazio escuro e sem fim. 


A mulher-Coisa continuava parada, no mesmo lugar onde caíra. Ela observava tudo, ainda sorrindo seu sorriso cruel, sem dar sinal nenhum de que iria interferir. Cláudio ainda não compreendia perfeitamente qual era o papel dela ali, mas ele tinha coisas maiores para se preocupar.


A Besta se ergueu novamente. O ferimento que ela havia sofrido em um de seus membros vertia um sangue negro, sangue-piche, denso como lama. Outro membro foi crescendo de suas costas e substituiu o anterior, enquanto aquele se regenerava.




- eSsE é Um EsFoRçO iNúTiL, cLáUdiO. nÓs ExIsTiMoS dE mOdOs QuE vOcÊ nÃo PoDe EnTeNdEr. VoCê NãO PoDe NoS fErIr Ou DeStRuIr. nÃo ReSisTa, nÃo Há MoTiVoS pArA lUtAr.




- Você matou o Eduardo! Você transformou ele nessa… Coisa bizarra! Você quer me matar!

- eDuArDo NãO eStÁ mOrTo. ElE aGoRa FaZ pArTe De NóS. eLe GaNhOu AcEsSo A cOnHeCiMeNtOs QuE NeNhUm HuMaNo PoDe ImAgInAr TeR, e Em TrOcA, tUdO QuE eLe TeVe QuE aBrIr MãO fOi A sUa InDiViDuAlIdAdE.

- MENTIRA! Você comeu ele, E AGORA QUER ME COMER!!!

- nÓs NãO pReCiSaMoS nOs AlImEnTaR. nÓs AsSiMiLaMoS a CoNsCiÊnCiA De OuTrAs FoRmAs De ViDa, CoM o InTuItO dE aMpLiAr NoSsO PrÓpRiO cOnHeCiMenTo.

- Não interessa! Se você comeu, assimilou… O que quer que tenha feito, você o matou!.


Cláudio tentou se antecipar à aproximação do Monstro, engatilhando a arma e atirando mais uma vez nos membros. Dessa vez ele errou. A Coisa aproximava-se, implacável, cada passo um trovão. O braço de Eduardo apontava para ele.

- vOcÊ fAlA qUe NóS o MaTaMoS, mAs FoI vOcÊ qUe O dEiXoU pArA nÓs. VoCê É tÃo CuLpAdO qUaNtO nÓs.

- Eu… eu não podia salvá-lo! Você devoraria a nós dois se eu não fugisse!

- oRa VaMoS, cLáUdiO. aMbOs SaBeMoS qUe IsSo NãO é VeRdAdE…


Cláudio sentia-se correndo em círculos. Era como se, a cada passo que desse em uma direção, fosse para uma outra completamente diferente. Várias vezes ele pareceu caminhar em uma parede, a gravidade o forçando para baixo. A Coisa estava sempre atrás dele, deslocando-se com aquele corpo coberto por pústulas e braços, movendo-se de formas que ele mal conseguia ver.


A Coisa mergulhou nas sombras, como se nadasse em uma piscina. Cláudio pode vê-la movendo-se por debaixo dele, como se ele estivesse andando por sobre um vidro transparente colocado sob um lago de águas completamente negras. O Monstro passou por debaixo dele e, quando conseguiu ultrapassá-lo, começou a andar na vertical, subindo, encurralando-o. Ele escalava o vazio como se fosse um inseto monstruoso subindo uma parece. Quando finalmente encurralou-o, a Besta torceu todos os seus membros, virando as suas articulações em 180 graus. Cláudio ouviu o que ele acreditava serem os ossos do Monstro quebrando-se e unindo-se novamente. Enquanto se contorcia, o pescoço gigante recolheu-se para dentro do tronco, levando a cabeça-Eduardo consigo, atravessando todo o corpo, até sair no que deveria ser o abdômem da Coisa. 


Ela caiu sobre as pata-braços, e Cláudio quase foi esmagado pelo seu corpo. O supervisor caiu sentado, e teve que se rastejar para manter uma distância segura da Aberração.

- aCeITe sUa sInA, cLáUdIo. nÓs sOmOs iNeViTáVeIs.


A Coisa acertou-lhe um golpe com um dos braços, arremessando o supervisor à uma grande distância. Cláudio rolou sobre o chão de escuridão, a espingarda saindo de suas mãos e caindo à distância. Sentia a dor do golpe por todo o corpo, e seu braço latejava, na altura do ombro. 


Não havia tempo para a dor. Cláudio levantou-se como pôde. Ignorando os apelos de seu corpo lesionado, ele correu com todas as forças até sua espingarda. A Coisa vinha em sua direção. Quando ele finalmente alcançou sua proteção, a Besta já estava sobre ele.


Um dos braços menores da Criatura agarrou a perna de Cláudio. Felizmente, esse membro não era robusto o suficiente para se manter incólume à um tiro de espingarda à queima roupa. A rajada partiu o membro ao meio, livrando o supervisor e deixando a mão monstruosa apartada de seu corpo.


A Coisa precisou de um tempo para regenerar a mão perdida. Cláudio afastou-se novamente do monstro, correndo a solta pelas trevas, até se chocar contra algo duro e frio. O impacto o deixou zonzo. Ele conseguiu identificar o objeto: era a rede de canos que conduziam gás. Ele deveria estar próximo das escadas novamente, no limiar do mundo real e o mundo da Coisa.


Agora ele tinha um plano.


A Aberração se aproximava. Ele virou-se para encarar a Coisa: aquela enorme forma insetóide, com um humano pendurado em um pescoço-apêndice. Ele baixou a espingarda ficou parado, esperando…

- Eu desisto. Não posso com você. Se minha penitência, por todos os meus erros, é ser consumido pelo diabo, que assim seja…

- dIaBo É uM cOnCeITo DoS hUmAnOs. AsSim CoMo DeUs. VoCê SeRá PaRtE dE aLgO mAiOr, MaIoR qUe ToDoS oS hUmAnOs. E vOcÊ e EdUaRdO pOdErÃo FiCaR jUnToS pArA sEmPrE.

- Para sempre?

- sIm. ElE dEsEjAvA iSsO, aNtEs De NoS uNiRmOs. FoRaM oS sEnTimEnToS dElE, aO sErEm AsSiMiLaDoS pOr NóS, qUe NoS iMpElIrAm À iR aTé VoCê. ElE dEsEjA vOcÊ… cOmO vOcÊ dEsEjOu ElE.


O Eduardo-Coisa abriu os braços, e uma fenda abriu-se em seu peito. A fenda foi alargando-se, rasgando-o de ponta-à-ponta, até que o corpo estava completamente partido ao meio: cada metade se deslocando para uma direção, as vísceras caindo ao chão, sangue jorrando. As costelas cresciam e se afastavam, tomando uma forma muito parecida com…


Com dentes.


Através daquele corpo-boca, abria-se uma garganta de profunda escuridão, um verdadeiro abismo infernal. 


Para unir-se a Coisa, ele deveria ser engolido por ela.

- vAmOs, CláUdIo,- disse o corpo fendido de Eduardo, as duas metades da boca balbuciando as palavras em voz dupla - uNa-Se à NóS. vOcÊ nÃo TerÁ mAiS qUe NeGaR-sE. nÃo TeRá MaIs QuE eScOnDeR sEuS dEsEjOs. CoNoScO, aS dÚvIdAs DeIxAm dE eXiStIr.

- Eu sei… Eu sinto muito pelo que fiz a você, Eduardo… Eu sabia que você também era… Como eu… É difícil encarar essa verdade… E por isso, eu mereço ir ao inferno...


A Coisa babava o sangue de Eduardo, que escorria pelas costelas que eram dentes. A boca-homem se aproximava, sedenta por assimilar o corpo, a mente e a alma de Cláudio.


De repente, Cláudio levantou sua espingarda, e rolou para o lado direito. A Coisa guinchou, um som que saiu das profundezas abissais de sua garganta. Um som de quem estava surpresa.

- Eu vou para o inferno… MAS VOU LEVAR VOCÊ COMIGO!!!!


O tiro atingiu o alvo em cheio. O chumbo cuspido pela arma atingiu os canos de gás, arrebentando a sua armadura de metal e liberando seu conteúdo para o mundo. O gás entrou em combustão imediatamente. A explosão criou luz dentro daquele mundo de trevas. A Coisa gritou, um som de agonia, de dor. O corpo de Cláudio foi lançado, e ele pode ver, satisfeito, o inverso da manifestação: as trevas retrocediam, enquanto a luz crescia e tomava conta daquele lugar.





****************************





Cláudio sentiu as forças voltando. Seus olhos ainda ardiam quando se abriram. A visão turva revelava pouco, quase nada. Apenas um mar de tons laranja, e um cheiro de coisa queimando…


Junto com a consciência, veio a dor.


Cada osso, cada músculo e fibra, cada pelo do corpo dele doía. Era difícil mover-se, as articulações protestavam de uma maneira ruidosamente silenciosa. Ele tentou equilibrar-se, somente para cair vergonhosamente.


Era um milagre estar inteiro. Havia apenas algumas pedras em cima dele, e apesar da dor, ele estava completo. Aos poucos, já era capaz de se levantar. Procurou com a vista sua arma, em vão: esta tinha sumido, provavelmente soterrada sobre os escombros.


O Fosso estava iluminado por uma luz laranja, advinda das chamas que ainda queimavam, alimentadas por sobras de coisas abandonadas pelos homens. Olhando para aquele lugar, naquele estado, fez ele sentir-se aliviado. Mesmo desolado, mesmo em chamas e correndo o risco de desabar, aquele não era nem de longe aquela dimensão de trevas e loucura, tão ameaçadora, onde ele entrara uma hora atrás. 


Cláudio começou a procurar um local para sua saída. Todo escoadouro tinha pelo menos dois acessos: um pelo seu fosso de escoamento, outro por uma galeria auxiliar. Deveria haver uma escada em algum lugar… Ele só precisava achá-la.


Ele se deteve um instante, observando um grande amontoado de escombros perto de uma das fogueiras. Dois braços saiam do meio do entulho; um era humano, o outro não. A Coisa estava ali, soterrada. Morta.

- Ela não está morta, se é o que pensa. - Disse a mulher-Coisa, surgindo do meio das sombras alaranjadas, nua e chamuscada - Ela apenas dorme, mas isso não é o suficiente para eliminar sua existência.

- Eu achei que você fizesse parte dela. - Disse Cláudio, estranhamente satisfeito ao ver aquela mulher ali.

- Nós… eu faço. Mas não totalmente. Nossa união foi incompleta. Conservo parte da minha individualidade. Agora que ela dorme, posso agir por conta própria, pelo menos até que ela acorde.

- Como eu faço para matá-la?


A enfermeira sorriu.

- Você não pode. Nenhum humano pode. Sua ciência não avançou o suficiente para compreender essa Existência que repousa sob os escombros. Pra vocês, os sacrifícios necessários para extirpar essa Abominação do Espaço-Tempo estariam muito além de suas possibilidades. No entanto, nesse mundo, seu poder ainda é limitado. Vá embora enquanto pode, Cláudio. E fique perto da luz. Ela não gosta de luz.


Cláudio foi afastando-se da mulher. Deu-lhe as costas e foi procurar pela saída. Achou em um entroncamento que levava à um corredor, onde chegaria até a estação de tratamento. Cláudio botou os pés no primeiro degrau e sentiu que, finalmente, seu pesadelo tinha acabado.


Um pensamento assaltou-lhe a mente. Ele tinha que voltar.


A mulher-Coisa arregalou os olhos, surpresa ao ver o supervisor de volta.

- O que você faz aqui?

- Você disse que sua ligação com a Coisa era incompleta e que você manteve um pouco da sua individualidade.

- Isso é correto.

- Então é possível que Eduardo também não esteja completamente unido ao Monstro?

- Não. Eles tiveram uma união completa. Eduardo não existe mais. Sua individualidade foi aniquilada, e suas experiências fazem parte do arcabouço de conhecimentos armazenados nesta Existência. Sinto muito.

- Eu não acredito nisso. A Coisa disse que foram os sentimentos de Eduardo foi que motivaram-na a me perseguir. Isso só mostra que a individualidade dele ainda existe, em algum lugar… Eu o abandonei aqui, antes. Não posso deixá-lo de novo…

- Não faça isso, Cláudio. Ele não existe mais. Essa carne que você vê foi um artifício dessa Entidade para confundi-lo. Não se deixe enganar.


Cláudio não deu atenção ao que ela falou. Movendo-se como podia, suportando toda a dor, ele começou a mover os escombros até encontrar o corpo de Eduardo. Ele estava inteiro também, talvez devido ao poderes regenerativos do Monstro, e parecia dormir tranquilo. O grosso pescoço de carne sombria agora era uma simples membrana, frágil. Cláudio procurou por seu canivete nos bolsos, e quando o achou, cortou a membrana, libertando Eduardo do cativeiro monstruoso ao qual fora submetido.


O supervisor apoiou o seu colega, arrastando o corpo dele até a saída.

- Este ato será o seu fim, humano. Desista enquanto à tempo.

- Já desisti dele e de mim por tempo demais. Agora eu vou arriscar.

- Você condena a si mesmo dessa forma. Tudo bem, se é o que deseja. Até logo, Cláudio.

- Adeus... Espera… você não quer vir?

- Eu não posso. Já estou condenada. Vá enquanto é tempo.

- Me diga ao menos o seu nome.

- Mesmo que eu tenha mantido parte do que eu era, algumas coisas a Entidade tomou de mim. Isso foi uma delas.


Cláudio não se demorou mais com aquela mulher. Ele não podia salvá-la, mas podia salvar seu amigo. Devia isso à ele. Ele foi arrastando o corpo de Eduardo até as escadas. Por sorte, ele já dava sinais de estar voltando a consciência.

- Cláudio…?

- Oi, rapaz… tudo bem?

- O que aconteceu…

- Sem tempo para maiores explicações. Temos que sair daqui, esse lugar está para desabar.


Cláudio e Eduardo começaram a subir as escadas, quando perceberam que, lentamente, a luz das chamas estava retrocedendo…

- Corra, Cláudio. Ela está acordando. Você tem que sair daqui, AGORA!


Os olhos de Eduardo arregalaram-se.

- Não… De novo não!


Ele subiu as escadas, desesperadamente, e Cláudio o seguiu. Ao chegarem aos corredores da galeria, Cláudio seguiu à frente, guiando Eduardo à medida que eles avançavam. As sombras se tornavam mais fortes, se retorcendo como tentáculos de uma polvo ou cauda de lagartos, e Cláudio podia sentir o chão vibrando. Eles precisavam sair. 


Um som agudo, um grito infernal, ecoou por todo o esgoto. A Coisa estava vindo, furiosa não só poder perder seu futuro lanche, mas também por ter sido espoliada de um dos seus corpos assimilados. A Besta se aproximava ferozmente, cada passo do seu corpo titânico invocando uma escuridão dos confins do abismo. 


Cláudio conhecia os caminhos daquela galeria. Sem o controle do Monstro sobre o espaço, aquele era seu território, e ele podia se aproveitar disso. Virando em esquinas cada vez mais intrincadas, Cláudio conseguiu chegar em uma galeria onde o corpo da Coisa não conseguiria passar. Quando Ela chegou, comprimiu o corpo de forma que pudesse entrar na galeria, mas perdeu velocidade. A criatura, que na primeira vez fora silenciosa e implacável, agora gritava de ira e desespero. 


Finalmente ambos chegaram a escada de mão para o bueiro. Era a saída do esgoto.


A saída do inferno.


Cláudio subira primeiro. Ao olhar a sua direita, viu as sombras se contorcendo e avançando, e então acelerou o passo. Eduardo ia atrás, subindo freneticamente, desesperado pela possibilidade de ser pego novamente pela Coisa.


Os dois já sentiam o ar frio da noite, e a luz das estrelas caia sobre seus corpos. Cláudio saiu primeiro. Quando Eduardo estava prestes a sair, ele deu a mão e puxou o companheiro para fora. Rapidamente ele pegou a tampa do bueiro e jogou sobre o buraco, e bateu com o pé-de-cabra que ainda estava lá. 


Ele pode ouvir o guincho da Aberração, recolhendo-se novamente na imundice.


Os dois respiraram fundo por alguns minutos. Era reconfortante respirar aquele ar urbano que, mesmo poluído, parecia tão límpido naquele momento que ele poderia passar o resto da vida fazendo nada além de inspirá-lo. Cláudio levantou-se e foi até Eduardo. O homem ainda estava nu, e ele o cobriu com a manta que outrora levara suas ferramentas até aquela rua para que ele pudesse enfrentar a Coisa. Eduardo chorava, e quando Cláudio aproximou-se, ele o abraçou.

- Obrigado… Eu achei que você tinha me abandonado… Me deixado para trás… Aquele Monstro… Aquela Coisa… O que ela me fez ver…

- Calma… Já acabou… Ela não voltará. Ficará escondida nas sombras, onde parece ter poder.

- Mas, Cláudio, nós trabalhamos nos esgotos. Ela vai tentar nos pegar de novo! Eu não posso voltar! Não posso!

- Nem eu nem você vamos voltar lá. Eu nunca mais vou chegar perto de uma galeria de esgotos de novo. Vamos arrumar outro trabalho, você e eu, e vamos seguir com nossas vidas.


Os dois se abraçaram novamente. Cláudio podia sentir o pânico e o medo no corpo daquele homem, que tremia como uma criança assustada ao acordar de um pesadelo. Ele queria proteger aquele homem, pedir-lhe desculpas por ter sido covarde, por tê-lo abandonado por vergonha de admitir quem ele era. Os dois se encararam por um momento, Cláudio acariciou o rosto de Eduardo, e os dois se beijaram, profundamente.

Cláudio estava feliz, tão feliz que sequer percebeu os longos braços negros que cresciam das costas de seu amado. Ele despejava anos de frustração e sofrimento naquele beijo, um beijo que aguardou quase trinta anos, o último beijo de liberdade. Quando finalmente os braços monstruosos o envolveram, ele não teve sequer tempo para gritar: a última coisa que viu foi o céu estrelado,cada estrela sumindo, sendo engolida pela escuridão do firmamento.

Comentários

  1. Gostei o Claudio sumcubio aos desejos carnais. Adorei a forma da Coisa que mais parecia ser a demonstracao da Carne e Perversao.

    Claudio vivera eternamente na escurido do fosso junto ao seu amado.
    Amei.

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