Irmãs
Um episódio em 1937
I
Distraída
em meus devaneios imaginários infantis, não percebi que havia alguém
ali. Só notei sua presença quando ele se aproximou, abaixou-se ao meu
lado e perguntou:
– Por que a senhorita não está lá fora, com sua mãe, tomando chá?
– Minha mãe mandou que ficasse aqui dentro e não lhe atrapalhasse. – Respondi.
Ele
era um homem alto e forte, filho de minha tutora, uma senhora muito
culta e bem vista por todos que eu conhecia, e, principalmente, por
minha mãe. Nunca soube o nome dele, nem nunca mais o vi.
– A senhorita sempre brinca sozinha?
– A senhorita sempre brinca sozinha?
Acenei com a cabeça, indicando que sim.
– Minha mãe nunca brinca comigo. Ela não gosta de mim. Meu pai foi muito mau para ela.
– Você sente falta de brincar com alguém?
De novo, balancei a cabeça, concordando.
– Você quer que brinque com você?
– Seria divertido! – Sorri para a possibilidade de ter companhia.
– Para quem você está servindo o chá?
– Esta é Margareth e esta é Ângela. – Falei indicando as bonecas.
– Elas gostam muito de chá?
–
Elas não gostam. Elas só tomam, porque eu tomo. Minha mãe diz que é
para a minha saúde, mas eu não gosto do gosto. E elas também não
gostam.
– Então, porque você não as deixa sem tomar o chá por hoje? Eu e você podemos brincar de outra coisa. O que você acha?
Acenei que sim com a cabeça.
– Venha. Sente-se no chão comigo. Levantei-me da cadeira onde estava e fui sentar-me no chão ao lado dele.
– Agora, seja uma boa menina e faça silêncio, que vou lhe ensinar uma brincadeira nova.
– Disse ele, colocando a mão sobre minha boca.
Sua
mão era pesada e ele a apertava contra o meu rosto. Instintivamente,
segurei seu braço. Queria que ele entendesse que estava me machucando,
mas ele continuava me segurando com força.
Então,
senti sua outra mão descer pelo meu vestido até minhas pernas. Ele
parou na altura dos babados e sua mão começou a acariciar minhas coxas,
subindo por baixo do vestido. De repente, senti dor. Uma dor profunda.
Eu chorava, mas ele não saia de perto de mim. E a dor não parava.
Parecia que aumentava e me consumia por dentro.
Estava
sufocando, com a mão dele parecendo uma pedra enorme sobre meu rosto.
Sufocando com a dor. Meus olhos estavam cheios de lágrimas, mas eu o
via. Via-o sobre mim. Seu corpo parecendo uma rocha, sobre mim.
II
Catherine
estava só no quarto. Eu a observava brincar. Achava linda as cores que
ela tinha, pele levemente rosada, cabelos cacheados à altura dos ombros,
olhos azuis, calmos como um céu sem nuvens. Sempre quis entender por
que ela tinha cores e eu não.
Mas
então, ele apareceu. Ali. Parado à porta. Ele e o véu negro que o
cobria. Seus olhos castanhos escondiam um fundo vermelho assustador.
Não
gostei quando ele se aproximou dela. Não gostei quando ele conversou
com ela. Aquela escuridão me incomodava. Ele não era bom.
Aproximei-me
dos dois. Queria protegê-la. Mas, então, ele segurou seu rosto. Era
forte. Era sufocante. Ele a estava machucando. Ele me estava
machucando.
Segurei
seu braço, mas parecia que ele não me sentia. Comecei a bater nele com
força. Queria que ele a soltasse. Então algo me paralisou. Algo
profundo. Uma dor. Lembrei-me da dor que uma vez senti. Vi-me caminhando
para o escuro de novo. Eu tinha que reagir. Não podia deixar que ela
também caminhasse pela escuridão.
Pulei
em cima dele. Bati. Mordi. Gritei. Nada resolvia. Era como se eu não
estivesse ali. Então a dor veio lancinante de novo. Ele a estava
machucando muito. Eu não podia... Eu não conseguia fazer nada.
III
Não
sei quando parou. Quando tudo terminou. Apenas sentia a dor. Aquela
imensa dor. Estava deitada em minha cama, chorando como se minhas forças
fossem acabar. Chorando como se pedisse para morrer.
Acordei,
no dia seguinte, ainda viva, ainda com dor. Mas senti algo diferente.
Como se alguém estivesse ali, me abraçando, com um toque muito leve.
Como se alguém que eu não via quisesse me proteger.
Naquele
dia, não queria ir a lugar algum, não queria falar com ninguém. Queria
ficar só. Resolvi, então, esconder-me no sótão. Sabia que ninguém iria
até lá.
Abri
a porta de meu quarto. Olhei pelo corredor e não vi ninguém. Caminhei
em direção a porta que dava para a escadaria do sótão. Abri-a. Subi os
degraus com calma. Não queria fazer barulho. Não queria que ninguém me
encontrasse.
A
luz do sol entrava por algumas frestas do telhado, então o local não
estava totalmente escuro. Senti que poderia viver ali eternamente.
Afastada de todos. Calada. Esquecida.
Caminhei
por entre móveis, brinquedos, espelhos velhos. Tudo estava empoeirado.
Tudo estava esquecido. Decidi sentar-me no chão, em um canto, perto de
alguns baús enegrecidos pelo tempo.
Nesse
momento, percebi que algo ainda estava vivo em mim. Fui tomada por um
súbito sentimento... Curiosidade. Curiosidade de abrir aqueles baús
esquecidos. Desvendar o porquê de estarem ali.
Havia
um, em particular, que chamou minha atenção. Era branco, com pequenos
detalhes florais, abotoaduras de couro avermelhado e ouro velho.
Aproximei-me. Retirei outro baú menor que havia em cima e abri-o. Havia
um vestido branco, já amarelado por estar tanto tempo guardado. Era um
vestido de noiva. Percebi que abaixo dele, dentro do baú, haviam cartas,
fitas e fotos.
Peguei
algumas fotos e ajoelhei-me, inclinando-me para um facho de luz, para
vê-las melhor. Eram fotos de minha mãe e meu pai. Em algumas delas,
havia duas crianças, dois bebês.
Então,
o facho de luz enfraqueceu-se. Pelo canto do meu olho, vi uma luz
azulada semitransparente. Olhei. Havia uma menina, idêntica a mim.
Parecia que eu estava olhando-me em um espelho. Ela ergueu o dedo
indicador, apontando para a foto.
Agora eu entendia. Nunca fui filha única.
Muito bom. Vontade de ler a continuação...
ResponderExcluirObrigada, Franklin!
Excluir<3
ResponderExcluirSó li agr, mas já tô amando a série *-*
ResponderExcluir