Susan Harks - I - II - III




PRÓLOGO





Londres, 04 de novembro de 1950

Querida Anne,
Estou na Inglaterra há quase um mês e ainda não tenho grandes novidades para nossa investigação. Entrevistei algumas pessoas nos povoados por onde passei e estes sempre me contavam as mesmas histórias. Tudo o que está na notícia do Diário Londrino de 18 de setembro. O jornal de hoje traz mais um desaparecimento, parece-me que a menina, desta vez, estava em sua casa. Segundo a mãe, a qual consegui que me contasse algo a mais sobre o ocorrido, apenas acrescentou ter ouvido um ruído no quarto da filha e ao subir para ver o que acontecia, viu a menina desmaiada nos braços de um homem alto e com uma larga capa negra; logo em seguida, viu-o pulando a janela e correndo pelo gramado da casa em direção ao rio. Além disso, nada mais posso contar-lhe, pois, como disse, todos apenas repetem os fatos.
PS.: Segue o jornal com a notícia do citado desaparecimento.

Anthonie Flourbe


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Cairo, 07 de dezembro de 1950

Senhorita Ross,
Como em minha última carta, continuo a recolher dados dos jornais. O Sr. Zahark continua a ajudar-me com as traduções e os dialetos, mas muitos elementos se confundem, pois é uma linguagem muito rústica. De novas apenas conto que de épocas em épocas esses desaparecimentos ocorrem.

Dr. Stanner

México, 19 de dezembro de 1950

Anne,
Querida amiga, sinto-lhe informar, mas não consegui nada de novo em minhas investigações. Duas crianças desapareceram e um homem foi encontrado, em estado de choque, em uma praça local, após, segundo ele, ter sido seduzido, em um bar, por uma ruiva vestida de negro. Fui ao bar indicado pelo homem e conversei com alguns garçons. Todos disseram que nada viram de estranho. E quanto à ruiva, disseram que não viram quando saiu e se estava acompanhada, somente se lembravam de que ela chegou por volta de meia noite.
Esses casos juntam-se aos 25 que ocorreram este mês. An, peço que me perdoe, mas não consigo ver ligação entre os casos que ocorrem aqui. Tudo que sabíamos eram desaparecimentos de crianças, mas agora homens e mulheres são afetados também.
PS.: Não tenho bons pressentimentos.

Susan Harks

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Tóquio, 05 de janeiro de 1951

Anne Ross,
Estou um mês afogado em ópio e nada aconteceu... Ao menos as japonesas são ótimas massagistas, mas fuja de brigas... Houveram três desaparecimentos em cidades próximas e dois aqui em Tóquio. Duas mulheres e três homens. Já conto 13 ao fim deste mês.
PS.: Obrigado pelas férias!

Sr. Thompson

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(Telegrama não assinado)
17 de março de 1951
Venha o mais rápido. Encontrei.

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(Telegrama destinado a Sr. Flourbe, Dr. Stanner, Srta. Harks e Sr. Thompson)
02 de abril de 1951
Regressem o mais rápido possível.
Sta. Ross





O ÚLTIMO CONVIDADO



Era noite, quando a última carruagem parou em frente ao grande portão de ferro ornamentado com figuras de rosas e de formato irregular, de modo que de seu topo oval emergiam lanças. Era Richard Thompson, um senhor que não aparentava em nada seus vinte e oito anos. Lembrava-me de Thompson altivo e elegante, como o dos bailes que frequentava. Quem o vê agora não imagina ser ele um médico altamente conceituado.
– Richard! Como foi de viagem?  – perguntou Anne dirigindo-se ao convidado.
            – Cansativo. Adoraria uma massagem à japonesa! – disse em meio a um riso malicioso e voltou-se para mim – Continua linda, Susy.
– Boa noite, Sr. Thompson. – respondi, voltando-me em direção ao grande salão da entrada.
Entrei na iluminada sala, agora ocupada pelos outros convidados. O Dr. Stanner, homem alto e magro, que gosta de ser tratado de doutor por ser advogado, aproximou-se e cumprimentou o recém-chegado. Sr. Flourbe apenas fez um gesto cortês, mas manteve-se distante.
– Creio que apenas me esperavam para tratar da urgente reunião. – disse Thompson lançando um olhar de egocêntrica importância.
            – Trataremos do assunto amanhã, por preferência da Srta. Ross. – retrucou Anthonie Flourbe pouco antes de retirar-se.
            – Então, – perguntou Richard Thompson, voltando-se para Anne – onde é o meu quarto?
            – Por favor, siga-me. – respondeu-lhe a anfitriã.
Particularmente não entendo como ela consegue ser cortês com esse sujeito. Mas Anne sempre foi assim, cortês com todos. Ainda não consigo compreender como tudo isso ocorreu a ela. A pequena Anne, sempre tão frágil, parece uma boneca de porcelana com sua pele alva e as bochechas sempre coradas, sem o menor esforço. Como pode ela sofrer tanto e ainda aparentar tamanha calma e alegria? Foi com este questionamento silencioso que segui para meus aposentos.

*   *   *

Um gramado verde oliva, flores que desenhavam um arco-íris iluminado pelo sol da manhã e pássaros que voavam e cantavam, pulando entre os galhos do carvalho centenário que dava sombra à fonte de anjos na margem esquerda da mansão. Era essa a paisagem que me convidou a, junto à janela, aspirar um bom dia.
Mas parece-me que não fui a única, pois Thompson já andava de maneira muito dada pelo jardim de nossa anfitriã. Olhei as horas, arrumei-me e desci para o grande salão. Não esperei muito até que Anne chegasse. Hoje era o derradeiro dia de nossa visita. Mas, surpreendeu-me o comentário de minha querida amiga:
– Não lhe agrada a presença do Sr. Thompson. Adoraria saber o porquê.
– São coisas do passado, querida amiga. Não me atreveria a aborrecê-la com isso. – respondi, voltando-me para a janela aberta, com um olhar distante em meio a minhas recordações, agora, despertas.
– Certas coisas do passado não devem ser relembradas. – disse-me, ao segurar minhas mãos – Desculpe-me. – e virando-se para o longo corredor sumiu, aparecendo pouco depois convidando-me para o café, já servido.
Atravessei o longo corredor, ornamentado com quadros clássicos e estátuas com flores naturais presas aos braços ou ao redor das cabeças e pescoços. Cheguei, então, ao salão, no qual havia jantado na noite anterior. Somente agora reparava o vaso de flores silvestres, num canto próximo a grande janela de vidro, que dava para o jardim lateral da casa.
Sentei-me à ponta da mesa, junto a Anne que estava sentada à cabeceira. Em seguida entrou Thompson fumando um charuto que devia ter comprado durante a viagem. Logo chegaram os outros e compuseram a mesa. Sr. Thompson não resistiu e inconvenientemente perguntou:
– Quando vamos tratar de negócios, Srta. Ross?
– Vamos tomar o desjejum e depois conversamos. – respondeu-lhe An calmamente, mas creio que nada alegre com a recordação.
Assim, fomos servidos e comemos em silêncio. Após nos levantarmos da mesa, dirigi-me à biblioteca à procura de algo para distrair-me. Lá chegando, percebi que, sentado no sofá que ficava de frente para a lareira, do outro lado da grande sala, de modo aos livros ficaram ao menos um pouco protegidos, Richard Thompson escrevia algo em um bloco de notas. Segui em direção aos livros e percebi que o Sr. Flourbe entrara, atrás de mim. Ao perceber nosso movimento, Thompson encerrou suas anotações e retirou-se em silêncio. Este senhor deve estar a esconder algo, pensei. E ao que me parece Flourbe escutou (mas não me lembro de ter pensado em voz alta).
– Também acho este sujeito muito estranho. – iniciou – Suspeito que saiba coisas que não quer compartilhar, pois procura sempre escrever seu diário à sós, como se pudéssemos ver por entre as folhas ou deduzir o que escreve através dos movimentos de sua pena. Além disso, sempre pergunta o que descobrimos em nossas viagens, sem nunca demonstrar verdadeira curiosidade, como as pessoas comuns. Douglas contou-me que o mesmo fez com ele. Acho esse homem um mistério e não costumo gostar de mistérios, Miss Susan. Creio que sempre nos decepcionamos com eles. – dito isto, retirou-se.
Enfim só, pude ler meu livro distraidamente. Minha leitura apenas foi quebrada pela sineta que anunciava o almoço. Depois da refeição, que ocorreu novamente mergulhada em um profundo silencio, retirei-me para os meus aposentos. Foi quando, ao passar em frente ao quarto de Richard Thompson, detive-me ao ver que guardava seu bloco de notas na escrivaninha. De modo discreto, prostrei-me ali para ver se seria necessário algum segredo para chegar àquelas anotações, mas nada pude ver. Assim, segui para meu quarto.
Foram-se duas horas até que Richard deixasse seu quarto. Estava debruçada sobre minha janela e vi suas luzes apagarem-se, prestei cuidadosa atenção e ouvi o ruído suave de sua porta fechando-se. Cautelosamente, dirigi-me ao seu quarto, observando se ele não estava próximo o suficiente para me ver. Quando toquei a maçaneta senti duas mãos segurando minha cintura. Assustada, virei-me.
– Com saudade de nossas conversas à meia-luz de seu quarto, querida Susan?
– Senhor Thompson... – interrompeu-me apertando seu dedo contra meus lábios.
– Richard. Apenas Richard para você, minha lady.
– Richard! – disse-lhe ao soltar-me os lábios – Que pensa que sou, senhor?
Retirei-me, em seguida, quase tropeçando na ponta de meu vestido que se arrastava pelo piso de madeira lustrada do corredor, e segui em direção à escada, buscando alcançar a biblioteca e o fogo da lareira. Assim ele não poderia seguir-me ao meu quarto. De repente, estava diante da grande janela olhando a sombra que o anjo da fonte produzia na grama.
– O que houve, Susan? – perguntou-me Anne, já ao meu lado – Você adentrou a sala tão apressada.
– Nada. – foi apenas o que consegui responder, em meio aos saltos que sentia em meu peito.
– Venha...
Ela levou-me a uma cadeira acolchoada próxima ao sofá, onde se sentara, em frente à lareira. Somente então percebi que a tarde estava fria e por isso todos, com exceção de Richard (Thompson, preciso chamar-lhe Thompson), estavam ali.
Douglas Stanner falava algo sobre uma tempestade que chegaria com a noite, mas não consegui concentrar-me em nada além da dança das chamas na lareira.






LEMBRANÇAS




Às seis horas, uma moça trajada com avental branco e touca que lhe prendia os cabelos, adentrou a grande biblioteca e, dirigindo-se a Anne, falou, com uma voz baixa e muito suave, que o jantar estava servido.
Todos nos levantamos e nos dirigimos à sala com a grande mesa de madeira e a janela de vidro que dava para o jardim. Ao chegarmos An, colocou-se em seu lugar de costume e Douglas puxou a cadeira em que me sentara anteriormente.
– Senhorita! – disse-me com um sorriso. Ainda não havia reparando em seu belo sorriso, que forma uma covinha na bochecha esquerda e que lhe dá marcas de expressão condizentes a sua idade.
– Agradecida, senhor Stanner.
Douglas sentou-se ao meu lado, àquela noite, e o senhor Flourbe, à minha frente, restando ao senhor Thompson a cadeira ao seu lado.
Mais uma vez a refeição foi silenciosa, mas notei os olhares de Richard para o homem ao meu lado. Seu olhar era um misto de curiosidade, talvez de nossa repentina aproximação, e de raiva, como um cão que busca tomar desesperadamente o osso de outro.
De repente, Anne levantou-se, já ao final do jantar, e falou com uma voz calma, mas apreensiva, de certo modo.
– Peço-lhes que descansem um pouco agora e às oito horas reúnam-se comigo na biblioteca, pois não posso mais demorar com nossa reunião. – e com isso retirou-se em direção à cozinha.
Douglas levantou-se e, prontamente, afastou minha cadeira. Agradeci e, sem compreender bem o porquê, voltei-me para buscar a reação de Richard, mas este já havia sumido.
Passei as horas seguintes em companhia do senhor Stanner. Como eu, ele também havia reparado as reações de Thompson e sobre isso conversamos, em quanto nos dirigíamos à varanda do lado esquerdo da casa.
Eu adorava aquele lugar, ficava olhando para a fonte sempre que me colocava a janela, mas ainda não havia estado naquela varanda, somente estive na do lado direito, onde há uma palmeira ainda mal crescida. Estar ali era muito melhor que apenas olhar. O grande carvalho dava sombra aos anjos que tocavam suas harpas ou sentavam-se ao pé da fonte. Lá, eu e Douglas sentamo-nos e, por algum tempo, observamos o jardim com suas flores em círculos e, ao lado, o caminho de pedra que levava até a fonte e seguia mais longe até um pequeno balanço preso, por cordas, à um galho bem grosso de uma árvore bem formada.
– Na minha profissão, senhorita Harks, – disse-me de forma a apresentar uma revelação – aprendemos a perceber significados mais profundos em simples olhares ou palavras. Desculpe-me apresentar-lhe essa insinuação, mas em meus trinta e três anos, sendo dez os quais advogo, não consegui deixar de ser curioso...
– E o que insinua o senhor, senhor Stanner?
– Desculpe-me, mais uma vez. Mas qual a ligação entre a senhorita e o senhor Thompson?
Eu respirei fundo e procurei as palavras certas para responder. Douglas percebeu minha hesitação.
– Se não quiser falar sobre isso, principalmente a um estranho, eu compreenderei. Preciso educar minha curiosidade. – refletiu ele, em meio a um sorriso tímido e um desviar de olhos de meu rosto para a grama.
Fiquei uns minutos em silêncio, brigando com minhas memórias e minha dor e buscando as palavras certas para quebrar aquele silêncio que estava tornando-se mortal.
– Eu preciso... – disse por fim – Preciso contar a alguém.
Douglas olhou-me como se procurasse enxergar a força que eu fazia para pronunciar àquelas palavras. Seu olhar tornou-se ameno, como se quisesse ajudar-me a expor minha dor, como se quisesse ter o remédio para curar minha ferida. Ele nada falou, apenas me olhou...
– Thompson era primo do médico de minha família e conseguira um emprego de ajudante deste... Um dia fiquei doente, a febre que se deu durante o inverno de 45, tinha 17 anos, e o doutor Petterson veio examinar-me e trouxe Richard. O doutor receitou-me alguns remédios controlados e repouso absoluto e para melhor administrar meu tratamento convenceu meu pai a hospedar o primo como enfermeiro. Mesmo contrariado, meu pai aceitou, queria que eu melhorasse o mais rápido possível... Ouvia-se muita coisa sobre doenças, naquela época.
– Todos os dias, meu pai acompanhava Thompson no horário dos remédios. Assim foi durante um mês e Richard conseguiu ganhar alguma confiança dele, pois, pouco a pouco, meu pai parou de acompanhá-lo e nós passamos a ficar sozinhos.  Começamos a conversar, enquanto ele cuidava de mim... – respirei fundo e continuei
– Fiquei doente durante quase quatro meses e, durante todo esse tempo, Richard esteve em minha casa. À hora do remédio, conversávamos sobre vários assuntos e ele lia alguns poemas que escrevia durante uma aula que não gostava na faculdade...
            – Enfim, fiquei boa... Mas quando meu pai pensou que estava livre do jovem médico, o doutor Petterson apareceu em minha casa, acompanhado por Thompson, para que este pedisse minha mão. Meu pai negou, mas eu estava apaixonada. Passei a encontrar-me com Richard às escondidas, sob juras de que iria a um passeio pelo parque ou à biblioteca à procura de algum livro que afirmava não ter em casa. Meu pai sempre mandava alguém me seguir, então prolongava o caminho até despistar meu vigia – falei em meio a um sorriso de orgulho – e, então, corria para os braços daquele que achava ser o príncipe que me amaria por toda a eternidade...
– Mas meu pai descobriu e, na presença do doutor Petterson, disse-me – meus olhos encheram-se de lágrimas – que Richard estava noivo de outra moça, há cerca de um ano. O médico confirmou-me a história e desculpou-se, afirmando que eu era melhor partido que a outra moça. Não consegui conter-me e faltei com respeito a meu pai... – gotas de água escorreram até meu queixo – Ele não admitiu e expulsou-me de casa. Fiquei sabendo depois, por minha tia Isabel, mãe de Anne, e que me acolheu em sua casa, que meu pai me havia deserdado.
– Como última tentativa de que tudo se tornasse mentira, e em meio a uma explosão de paixão em meu peito, procurei Thompson. Ele recusava-se a responder-me... Implorei de joelhos aos seus pés e, naquela noite, e somente naquela noite, entreguei minha alma a ele. Na manhã seguinte, ele foi embora e desde então não o havia visto mais.
            Quando terminei, percebi que Douglas ainda me olhava. Sua mão direita enxugou uma lágrima em minha face. Em seguida, olhou para o relógio de bolso prateado.
– São quinze para as oito... Procure acalmar-se. Se quiser, retiro-me para deixar-lhe mais à vontade.
– Não... – minha voz era rouca – Prefiro que fique.

Um silêncio dominou o ar e foi quebrado apenas pela sineta que tocou avisando-nos da reunião. Douglas levantou-se e me estendeu sua mão, segurei-a e me pus de pé e, de braços dados, seguimos para a biblioteca.

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