Susan Harks - IV - V




A REUNIÃO



Ao entrarmos na grande sala da lareira, Thompson lançou-nos um olhar sarcástico.
– Aí estão os pombinhos!
– Não se preocupem, ainda não começamos. – disse Anne apontando o sofá e, com um tom sério, voltou-se para Richard – Agora, saberão o real motivo de estarem aqui.
Sentei-me junto ao braço direito do sofá vermelho vinho de três lugares e ao meu lado, como que me protegendo de algo, Douglas. Na ponta esquerda estava Anthonie. Anne sentou-se em uma cadeira acolchoada de madeira mogno, ao meu lado e Richard permaneceu em pé, próximo à janela.
O fogo estava mais vivo, agora, do que mais cedo, naquele dia, e a tempestade de que Douglas falara começava a dar sinais de vida e de violência. O céu, através da janela, era mais negro que uma noite sem estrelas. Podiam-se ouvir trovões ao longe. A noite parecia concretizar nossa ansiedade. De repente, um clarão vindo de fora da janela indicou que raios abriam caminho para a chuva e o vento da tormenta que acabava de chegar. Neste momento Anne começou a falar:
– Acho que esta história deve ser contada do começo, – e virando-se para mim – não é prima?
Apenas fiz um leve sinal com a cabeça, enquanto olhava seus olhos, que agora eram tristes. Ela já iria continuar, quando Thompson aproximou-se.
– Então, são primas? – perguntou ele, como se compreendesse algo.
– Somos, senhor. – respondi-lhe, sem buscar-lhe os olhos, pois sentia que me fitava intensamente.
– Então, Anne é filha de sua tia Isabel? – não o respondi – Foram vocês que acolheram a pequena Susan... – agora, dirigia-se a An – Foi horrível o que seu tio fez com a pobre garota... Deveria tê-la mandado para um convento. – e olhando para Douglas ao meu lado – Com certeza, teria sido melhor...
– Basta, senhor! – disse Anne, levantando-se – Não cabe ao senhor nenhuma explicação ou opinião sobre os assuntos de minha família. Não se esqueça de que está aqui apenas por ser amigo de meu querido marido e dever-lhe alguns favores.
– Senhorita... ou devo dizer senhora, – pronunciou-se Flourbe – devo pedir-lhe que nos conte o motivo de nossa reunião, já que é por isso que nos chamou.
Thompson retornou à janela e, sentando-se novamente, Anne recomeçou.
– Há três anos, casei-me com Anry Ross e, há três anos, estou separada de meu amado marido... – de seus olhos saltavam lágrimas – Tudo ocorreu em nossa noite de núpcias... Saímos do salão de festas e entramos na carruagem. Durante todo o caminho, tive a impressão de ver olhos que nos seguiam, nos vigiavam... Aqueles olhos, nunca vou conseguir retirar aquele monstro da minha cabeça... Aqueles olhos vermelhos e sedentos... – An agarrou-se à cadeira como se quisesse destroçá-la com as mãos, seus olhos estavam fechados e ela pronunciou as últimas palavras entre dentes.
Respirando fundo e enxugando as lágrimas, ela abriu os olhos e, percebendo minha mão estendida, segurou-a.
– Chegamos a esta casa, que era herança dele, e enquanto levava-me para nosso quarto, contei-lhe o que vi. Sua primeira reação foi de surpresa, mas logo me disse que não era nada de mais. Mesmo assim, percebi que ele havia ficado apreensivo... Quando entramos no quarto, tudo estava escuro. Anry soltou-me a mão e dirigiu-se à luz, nesse momento ouvi algo que não pude identificar. Assustada, chamei por Anry, mas ele não respondia... Corri pelo quarto escuro, tropeçando em tapetes e mesas, em busca de algo que ligasse a luz. Quando finalmente passei a mão por algo que, ao apertar, acendeu a luminária, parecia que um sol havia nascido dentro daquele quarto. – novamente, lágrimas escorriam por seu rosto e ela soltou-me para enxugá-las.
– Com a luz iluminando o quarto, pude ver, estendido no chão, meu querido Anry. Sobre ele, debruçado a altura de seu pescoço, estava um homem loiro e de capa negra. Quando se levantou e voou em direção a janela, pude ver apenas sua pele branca como gelo e seus olhos vermelhos e sedentos.
            – Disse que voou em direção a janela? – perguntou Douglas, falando pela primeira vez desde o início da reunião. Seu rosto demonstrava sua apreensão, creio que pela descrição, e sua surpresa com a palavra que Anne usara.
            – Digo que voou, doutor Stanner, porque moveu-se tão rápido que parecia um voo. – explicou-lhe An e, em seguida, continuou – Corri para o lado de meu marido, ele ainda estava deitado, mas consciente, tinha uma mancha de sangue no paletó e na camisa branca à altura do pescoço. Segui aquela mancha e percebi que pouco acima de seu ombro esquerdo havia dois furos dos quais saiam sangue ainda... Desesperada, agarrei a colcha que cobria a cama e apertei-lhe contra o pescoço. Ele gemeu e sua mão direita levantou-se instintivamente, dirigindo-se a dor. Só então percebi que seu punho direito também sangrava. Sem saber o que fazer ao certo, perguntei a Anry o que acontecera e quem era aquele homem. Ele não quis me dizer, mas insisti tanto que ele me contou.
            Ela parou um pouco, olhando para a chuva que caia, e levantando-se para atiçar o fogo da lareira, que já quase se apagava.
            – Ele perguntou-me se acreditava em vampiros, eu achei estranha a pergunta e passei a crer que era devido à febre... Ele queimou em febre por toda aquela noite e pelos dois dias seguintes. Certa vez, ao acordar e me ver ao seu lado, perguntou-me novamente e lhe respondi que não... Ele levantou o punho direito e, mostrando-me a marca, perguntou como aquilo poderia ser feito se não por presas de vampiro. Eu lhe disse que um instrumento pontiagudo poderia, mas ele riu, um sorriso triste... Não falamos mais sobre isso. E quando o médico que chamei para examina-lo chegou, ele o expulsou e mandou que chamasse Abhram Volter. Mandei chamá-lo... Um dia depois, ele chegou e levei-o direto a presença de Anry. Este mandou que me retirasse, pois queria ter à sós com o médico... Assim, sai.
            - Uma hora depois, o doutor Volter encontrou-se comigo na sala. Ele falou-me sobre um tratamento que resolveria o caso de Anry... Algo muito estranho, eu achava. Falou-me sobre flores de alho espalhadas pelo quarto, sobre água-benta e crucifixos. Sem perguntar nada, pedi para que providenciassem tudo. Arrumamos o quarto como indicado pelo doutor e Anry começou a melhorar. Chegou até a fazer alguns passeios pelos jardins. Pedi-lhe para que retirasse as flores de alho, pois queria consumar meu casamento... Ele não queria aceitar, então joguei-me aos seus pés e implorei-lhe. Ele segurou meus braços, ajudou-me a levantar e abraçou-me demoradamente. Resolveu, por fim, satisfazer o meu pedido, mas sempre afirmando ser perigoso... Aninhei-me em seus braços, entreguei-me aos seus beijos, pensei que finalmente seria de meu marido, quando ouvi apenas um gemido, abri meus olhos e vi... Vi aqueles olhos vermelhos olhando-me... Vi aqueles caninos de animal perfurando o pescoço de meu amado Anry.
            O ar faltou-lhe, como em um suspiro demorado, as mãos estavam unidas como em uma prece e dos olhos saiam contínuos riscos de lágrimas que escorriam até o queixo e pingavam sobre o colo de seu vestido verde oliva.
            – Algo nos olhos daquele homem dizia-me que seria a próxima, – continuou Anne com repulsa – que ele poderia viver para sempre e eu, morrer como meu Anry. Meu amado já não tinha mais forças... O homem levou-o, pulando pela janela... Gritei, corri... Corri o mais que pude, mas quando cheguei onde meu marido estava, ele estava desacordado e tinha sangue em sua roupa e... – respirou fundo – E em sua boca. Pedi aos empregados que me acompanhavam que o trouxesse para casa. Colocaram-no em nossa cama e pedi que recolocassem as flores de alho. Passei a noite ao lado de meu amado. Quando acordei, na manhã seguinte, ele não estava mais lá e nem em parte alguma da casa. Foi então, quando estava aqui, nesta sala, desesperada, que vi uma carta sobre a mesa de leitura. Era esta carta... – e, pegando uma folha de dentro de um livro, que a acompanhara durante toda a noite, entregou-me para que lesse e repassasse aos outros.

Querida Anne,
Minha amada esposa, peço que me perdoe, primeiramente, por não ter atendido seu pedido (adoraria poder ser seu, minha querida); em segundo, por ter que deixá-la.
Deixo-lhe esta carta para explicar-lhe algumas coisas:
– Vampiros existem.
– Aquele era Bartholomeu, um vampiro a quem doutor Volter busca há muito.
– Flores de alho espantam vampiros, segundo o doutor, mas tenho minhas dúvidas.
– Crucifixos também.
– Estacas de madeira não foram testadas, mas o doutor acredita que funcionem.
– Cortar a cabeça e fogo (li sobre isso em algum lugar, mas não me lembro com o que se relaciona).
– Me tornarei um deles Anne, aquele transformou-me.
Sinto que algo cresce dentro de mim. Devo partir antes que lhe ofereça risco.

Adeus minha amada.
A. R.

            Permanecemos em silêncio por algum tempo e foi a anfitriã quem o quebrou.
            – Há cerca de um ano recebi esta carta. – e passou-me outro papel, este era menor.


Senhorita R.,
Estou em companhia de outros e seguindo meus novos instintos.
Descobri coisas horríveis para você, minha lady.
Lamento afirmar que, na caçada de 1946, a causa da morte de seu pai fora Rita, uma das amigas do senhor B.
Passamos por alguns lugares... É costume das mulheres pegarem crianças.
Manterei contato.

A.R.       

            – Como não falou onde estava, recorri a vocês e os enviei, em segredo, a diversos lugares do mundo, para que pudessem investigar seu paradeiro. Devem perguntar-me agora: “por que nós?”. Cada um nesta sala conhece ou possui algo não muito comum... – e olhando para Thompson e em seguida para mim – Ou são amigos ou parentes confiáveis. – e sorrindo para mim, entregou-me um telegrama não assinado.


17 de março de 1951
Venha o mais rápido. Encontrei.


            – Por isso estamos aqui, senhores. – e, colocando-se de pé, – E vamos à Moscovo, amanhã ao meio-dia.

*   *   *

            Depois de horas de discussão sobre a viagem, saímos da biblioteca. Acompanhei Anne a seu quarto. Ela entrou na frente e eu, em seguida, fechei a porta. Ela estava debruçada sobre o peitoral da sacada olhando a lua que estava redondamente alta e o céu que estava, inexplicavelmente, claro, àquela noite, apesar de não ter estrelas. O vento era frio, indicando que a tormenta passara, e os soluços de Anne eram tão baixos que eu mal poderia ouvir se não me aproximasse.
            Segurei suas mãos e ela abraçou-me escondendo seu rosto em meio aos cabelos, agora desalinhados, completamente diferente daquela que havia entrado na biblioteca para a reunião. Agora, An era frágil e quebradiça como eu a recordava.
            – Sinto tanto a sua falta... Eu o amo tanto! – disse ela, enquanto me soltava e enxugava as lágrimas.
            – Sei que ele sabe disso. – balbuciei, sem saber bem como pude pensar nas palavras. Nunca senti a dor que a corroía, não podia dizer-lhe que entendia.
            – Agora que vou reencontrá-lo, tenho... – escondeu o rosto entre as mãos – Tenho medo de que ele tenha tornado-se um monstro... – essa palavra saiu-lhe como um sussurro – Não! – gritou, enfurecida consigo mesma – Não acredito! Meu Anry não é um monstro... Não pode ser! – Anne caiu de joelhos perto da cama de casal, para onde havia caminhado, e chorou, chorou compulsivamente.
            Dirigi-me ao jarro de água, colocado sobre o criado-mudo de mogno, ao lado da cabeceira da grande cama. Enchi o copo e estendi-lhe à mão.
            Ela segurou-o, trêmula, e bebeu. Aos poucos, ergueu-se e sentou-se ao pé da cama, olhando para o chão.
            Afastei-me dela em direção à porta que se abria para a sacada e voltei meu olhar para céu. A noite, permanecia clara, iluminada apenas pela luz da lua, mas o céu era escuro como um quarto envolto em breu.
            Anne, aos poucos, estava se acalmando, podia ouvir sua respiração suavizar e os soluços diminuírem, em meio ao silêncio que nos rodeava. Ainda assim, permaneci de costas para ela, buscando dar-lhe alguma privacidade nesse momento de medo e dor.
            Estava divagando em pensamentos sobre Douglas e Richard, quando ela colocou-se ao meu lado.
            – Sei que foram minutos decadentes e sei que seus pensamentos são particulares, mas estava tão presa a eles que me deixo levar pela curiosidade. – Finalmente um sorriso, mesmo que sutil, retornava ao rosto de Anne.
            – Pensava em Douglas e Richard e o que os fariam aceitar essa empreitada. Sei que Richard era amigo de Anry e que você lhe pediu que participasse como forma de pagamento de uma divida... Mas e quanto a Douglas?
            Anne fitava-me atenta, como se quisesse descobrir algo por trás das palavras que dizia. Respirando fundo e olhando para a lua, ela respondeu-me.
            – Susy, – seu tom era sério – desculpe não ter contado isso antes. – e olhando para mim – Acho que seria melhor sentarmos.
            – An, qual o problema?
            – Por onde começar... Nem todos nessa casa são o que parecem, querida.
            Anne sentou-se em uma poltrona vermelha perto da porta e olhou-me calculista, talvez tentando adivinhar a minha reação. Continuei em pé, olhando-a fixamente e esperando sua explicação.
            – Douglas tem algo diferente e temo que esteja apaixonando-se por ele, sem conhecê-lo o suficiente.
            – A questão aqui não são minhas paixões, prima, mas sim o segredo que você me esconde. Conte-me!
            – Douglas, Susy, é um advogado londrino, muito respeitado...
            – Eu sei disso An, pare de enrolar-me e chegue ao ponto.
            – Certo... Douglas era seu pretendente, quando seu pai descobriu que você estava conosco e quis concertar as coisas.
            – Como? Meu pai... Concertar as coisas?
            – Sim. Ele arrependeu-se e trouxe Douglas com ele, àquela noite em que você fugiu...
            – Não pode ser... Ele baniu-me da família, deserdou-me – minha voz era trêmula e meus olhos estavam borrados.
            – Pegue! – Anne levantou-se e pegou um papel na cômoda ao lado da cama – Eis o testamento de meu tio. Nunca o abri... É de sua posse.
            Segurei aquele papel sem saber o que fazer ou o que sentir. Não tinha noção de nada, apenas de Anne ao meu lado.




A VIAGEM





            Já passava das cinco da manhã e eu ainda andava de um lado para o outro em meu quarto, com o testamento em mãos e sem conseguir forças para abri-lo. Aquele papel amarelado, selado com o carimbo de vela de meu pai, colocava-me um medo inexplicável no coração.
            Desde que deixei minha casa, movida por uma paixão adolescente e romântica por Richard Thompson, nunca voltei a ver meu pai. A única noticia que tive do Conde de Damasburg foi a de sua morte. Mesmo profundamente magoada com a atitude de meu pai, chorei muito àquela noite.
            Nunca me interessei pelo seu testamento, nem ao menos sabia onde estava. Sabia, apenas, que me deserdara... A sua única filha, a sua única herdeira... Deserdada. E agora, estava eu com o seu testamento enlaçado em meus dedos e com as palavras que Anne dissera-me, indo e vindo na minha cabeça.
            Ele arrependeu-se... Ele queria concertar as coisas...
            Lágrimas escorriam pelo meu rosto e deixavam marcas em meu vestido, quando ouvi baterem à porta. Consultei o relógio, 9:30.
            – Senhorita Susan?
            Abri a porta, era Lourdes, a camareira de confiança de An.
            – Senhorita Susy, são mais de nove horas. O desjejum está servido e a senhora Anne pediu para perguntar-lhe se precisa de ajuda com as malas.
            – As malas... Ah, sim! Ainda não as fiz... Sim, pode ajudar-me, Lourdes? Obrigada!
            Arrumamos as malas e logo desci para sala de refeições. Apenas Anne estava lá, estava esperando-me para comermos juntas. Os outros, ela contou-me, já haviam comido e agora descansavam até o horário do trem.
            A refeição foi rápida, estávamos sem fome, eu devido a incerteza e a mágoa que invadiram o meu coração e Anne, provavelmente, com a lembrança e com a dúvida de o que o seu marido se tornara.
            Começamos, então, a conversar sobre a viagem, ela disse-me que sairíamos com pouco mais de uma hora de antecedência a causa da distância à estação de trem. Embarcaríamos no trem do meio-dia e levaríamos alguns meses para chegar a Moscovo.
            – Vou ao meu quarto, terminar de arrumar-me para a viagem. – disse-lhe ao aproximarmo-nos da escada.
            – Às dez e meia mandarei chamar-lhe.

*   *   *

            Ao entrar no quarto, vi o amarelado testamento sobre a mesa de leitura. Peguei-o e coloquei-o, cuidadosamente, em minha bagagem de mão. Não o leria, não agora, não hoje, meu coração ainda estava abalado.
            Ele queria concertar o erro...
            Tratei de vestir-me com uma roupa mais agradável à viagem. Procurei não apertar tanto o espartilho e coloquei um chapéu que me protegesse os olhos da claridade do dia, que estava muito ensolarado.
            Bateram à porta. Abri-a, prontamente.
            – As malas estão sobre a cama. – disse ao rapaz, que as pegou de uma vez e as levou do quarto.
            Eu saí atrás dele.

*   *   *

            Havia duas carruagens no pátio da propriedade de Anne. Em uma já se instalavam Flourbe e Thompson. Na outra, iriamos eu, An e Douglas.
            O cocheiro colocou minhas bagagens no carro e Stanner abriu-me a porta. Sentei-me ao lado de Anne, no centro do banco, Douglas pôs-se ao meu lado e An fez sinal para que o condutor seguisse.
            Fora uma longa e silenciosa hora de viagem até a estação de trem. Chegamos com apenas dez minutos para o embarque, então subimos e ocupamos nossos lugares no vagão dos dormitórios. Eu e Anne instalamo-nos no primeiro à direita, Douglas e Anthonie Flourbe ficaram ao nosso lado e Richard Thompson ao lado destes.
            Logo o fiscal passou nas cabines solicitando-nos os bilhetes e, enfim, começou-se a viagem.

*   *   *

            Jantamos às oito horas, como de costume em viagens longas. Foi uma refeição silenciosa, nada mais falamos desde o embarque. Comi pouco, estava enjoada, e, logo, retirei-me ao meu dormitório.
            Quando passava pela porta do vagão das cabines, senti-me sendo puxada para trás. Virei-me e vi Richard segurando meu braço.
            – Não se sente bem?
            – Estou um pouco enjoada. Vou para minha cabine descansar um pouco. – respondi-lhe apoiando-me no parapeito da janela.
            – Quer que eu a acompanhe?
            – Não é necessário. Eu estou bem.
            – A senhorita está pálida como papel. Mas pudera, não se alimentou direito durante todo o dia.
            Eu iria responder-lhe, mas faltaram-me as pernas e perdi o apoio da janela... Tudo ficou escuro.

*   *   *

            – Já era para ela ter acordado, Richard!
            – Acalme-se senhora Ross! Ao cair Susy bateu a cabeça, é normal que demore um pouco mais para acordar.
            – Trate-a por senhorita Susan, você é um médico! – reconheci a voz de Douglas, que estava exaltado.
            – Olhem... está acordando.
            – Susan, você está bem? – a voz de Anne falhava.
            – Sente algo estranho? Sua cabeça deve estar doendo. – Richard parecia carinhoso... O ajudante de médico meigo e atencioso que conheci em um passado distante.
            – Sim, dói um pouco...
            – Saiam, deixe-me examiná-la.
            – Não, senhor! Ficarei aqui! Que exame é esse que não pode se feito em presença de outras pessoas?
            – Por favor, Douglas... Deixe-o... – não consegui terminar.
            Todos saíram. Eu estava sozinha com Richard, como há anos, quando ele me trazia remédios ao quarto e lia suas poesias ao meu ouvido.
            – Sente algo além da dor de cabeça? – perguntou-me ele – Os olhos... Enxerga bem? Nada embaçado ou escuro? – sua mão segurava minha cabeça, enquanto seus dedos enlaçavam-se aos meus cabelos.
            – Enxergo... Bem... Mas, por que a voz me... Falha?
            – Tive que passar muito álcool em seu nariz e você acordou muito rápido, por isso a dificuldade de falar. Você vai voltar aos poucos... Não está se sentindo tonta?
            – Como se tivesse bebido muito.
            – É normal.
            – Você tem alguma ideia... Causou isso?
            – Tenho reparado que tem alimentado-se mal. A falta de comida enfraquece a pessoa. Algo a contrariou para que perdesse o apetite?
            Não lhe contaria nada sobre o que ocorrera no quarto de Anne na noite anterior. Nem mesmo eu queria lembrar-me daquilo, mas a carta com carimbo de vela não saia de meu pensamento... Ele queria concertar as coisas...
            – Não... Simplesmente não me sinto à vontade... A ideia de uma longa viagem de trem.
            – Não sei se isso lhe consolará ou piorará a sua situação, mas devo antecipar-lhe que logo mudaremos de transporte, pelo menos por alguns dias. Durante a travessia da Alemanha à Lituânia, iremos de barco.
            – Na realidade... Não é a condução que me apavora... Afinal minha viagem ao México foi a barco... Creio que é a apreensão com o objetivo da viagem.
            – Vampiros lhe assustam?
            – Ainda não vi um para afirmar-lhe isso...
            Bateram a porta da cabine. Era Douglas impaciente com o tempo que Richard ficara à sós comigo.
            – Descanse. – disse-me Thompson ao sair – E você, rapaz, deixe-a descansar.
            O médico saiu, mas Douglas deixou-se ficar à porta mais algum tempo, olhando-me.
            – Douglas, deixe-me... Vou dormir um pouco.

*  *  *

            Como o senhor Thompson adiantou-me, logo deixamos o trem e embarcamos em um belo navio branco, com um enorme salão de festas, onde se serviam as refeições, ouvia-se aos músicos, dançava-se e jogavam-se cartas até as dez horas da noite.
            Depois de um mês viajando de trem, ainda, passaríamos quarenta e cinco dias no mar. Felizmente, as acomodações eram ótimas.
            O único infortúnio foi uma tempestade a qual enfrentamos. Vi-a da janela de meu camarote. As ondas alcançavam as bordas do navio. O vento uivava horrendamente por entre os vidros da janela e lá fora, no convés, cordas eram arrastadas, cadeiras de descanso, que sempre ficavam a disposição na ala leste do navio, eram arremessadas de um lado para outro, quebrando-se em vários pedaços.
            Em um dos dias de tempestade, que durou três noites, um dos marujos fora pego de surpresa por uma onda, enquanto desenrolava uma corda que, segundo Flourbe dissera-me, era importante à segurança da viagem. O coitado do homem morreu afogado. Quando passou a tormenta pudemos prestar-lhe homenagem.

*  *  *

            Era o quadragésimo dia de viagem e eu estava em meu quarto lendo, quando bateram a porta.
            – Incomoda-se de que eu entre um pouco?
            – Não estou mais doente, desde aquele dia no trem, Richard! Não seria elegante ficar à sós com você em meus aposentos!
            – Tudo bem, querida. Não precisa alterar-se. Apenas leia isto e depois diga-me o que achou.
            – Agora, deixe-me sozinha!
            Era um de seus poemas... Ao pé da folha, a assinatura e a data. Ele escrevera no dia do meu desmaio. As palavras eram carinhosas e lembraram-me os seus antigos poemas.
            Li-o, reli-o e, após guardá-lo escondido entre outros papeis, preparei-me para o jantar. Já estava à porta quando um desejo assolou-me. Voltei-me, peguei o poema e li-o novamente. Ao guardá-lo notei que o tinha colocado embaixo da carta amarelada de meu pai.
            Saí!

***

            Desembarcamos na costa da Lituânia, onde conseguimos duas carruagens para nos levar até a estação de trem. Seriam mais dois meses de viagem até nosso destino final.

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