A floresta amaldiçoada - Parte II
O vento entrou pela janela do
vagão e folheou o diário de Richard que estava em minhas mãos.
“Estou a apenas
algumas horas da trilha indicada pelos moradores locais. Pergunto-me, se
precisasse esconder-me para sobreviver, em um mundo que não aceita meus
anseios, uma floresta amaldiçoada seria um bom lugar? Acho que sim, aqui é
quieto e os que vem não se importariam com raptores de criancinhas, que se
alimentam de sangue humano... Até porque, se você está morto, creio que não
seria necessário temer a floresta...
A noite está chegando, o que irá
surgir?
Passaram-se horas desde que a noite
caiu. Vozes chamavam-me e sombras rondavam minha barraca. Penumbras
curvilíneas... Como gostaria de uma mulher aqui... Em meio ao nada... Seria
interessante... Quando voltar para a civilização irei querer uma bela
companhia...
Voltei a cidade. Vivo. Ainda não
consigo racionalizar tudo o que vi, então anotarei como lembro...
A noite parecia não passar e as
penumbras excitavam-me. Sai da cabana para vislumbrar o que eram os sons e as
sombras. Belas orientais cercavam-me, seminuas, vestidas, despidas... Seus
olhares eram penetrantes e meu desejo fez-me segui-las por onde me guiassem.
Levaram-me de um lado para outro
pela floresta... Caminhos de mata fechada, cavernas... Aquela caverna... Aquela
gueixa... Tão pálida, tão gélida, tão suculentamente desejosa... As vestes
pendiam-lhe do seio nu e as fendas do quimono revelavam suas pernas alvas...
Embriaguei-me de sua morte...
Caminhei durante um longo tempo, até
minhas belas visões distanciarem-se de mim cada vez mais. Assim, o sol chegou
novamente e sai daquele sonho paradisíaco para meu irritante mundo real.”
Ri, interiormente, de como Richard conseguia sempre ser
consumido por seus desejos. Thompson... Não arrependo-me de nós, mas sinto pena
de você.
Canalha! – riu
Daemy, ao meu lado. – Nem em seu diário deixava de satisfazer sua imunda
carne... Sabe onde ele está? – olhei-a profundamente, analisando se aquela fala
deveria revelar-me algo oculto. Ela compreendeu-me e prosseguiu. – No sétimo
nível, saciando sua luxúria. – seu deleite fora tanto que um sorriso
esculpiu-se em sua face.
***
O trem chegou a nosso destino. Desembarcamos em meio ao
nada e seguimos a linha que o atendente da bilheteria havia marcado no mapa que
Flourbe comprara.
Começamos a caminhar por um trecho que parecia ter sido
aberto pelos moradores locais. Aquela trilha circundava a floresta sem,
contudo, adentrá-la.
De repente, senhora Lavreur, que estava a nossa frente,
junto de Flourbe, parou.
– É aqui! – ela disse.
– Aqui? – perguntei, mas a mulher já havia atravessado a
linha das árvores. Seguimo-la.
A princípio a floresta parecia bem iluminada. Conseguíamos
distinguir bem onde estávamos e víamos uns aos outros claramente.
Depois de muitas curvas à direita e à esquerda, indo cada
vez mais fundo pela mata, a bruxa parou.
– Agora esperemos.
Estendi meu xale no chão e me sentei. Daemy deitou-se ao
meu lado e, Flourbe ficara em pé, observando a mata.
Senhora Lavreur aproximou-se de um tronco caído e se
sentou, compenetrada em um diálogo com alguém que somente a ela se dirigia.
***
Horas passaram-se e a noite caiu. A floresta começou a
mudar. Vi vultos caminhando por entre as árvores. Alguns aproximavam-se para
observar-nos. Mulheres, homens, crianças... As primeiras imagens de humanos que
não instigavam meu instinto animalesco.
Estava tão entretida com os espíritos que me assustei
quando senhora Lavreur começou a gritar. Ela falava em uma língua que não
compreendia e se esquivava de algo que somente ela via.
Daemy, que permanecia deitada na relva, ao meu lado,
apenas disse:
– Sempre há um preço a se pagar...
Olhei-a, mas, agora, outra cena chamava-me a atenção. Os
vultos da floresta aproximavam-se, cada vez mais, cercando a bruxa.
Instintivamente, busquei por Flourbe. Não conseguia
localizá-lo em espaço algum dentro do meu campo de visão.
Novamente a bruxa chamava-me a atenção. Agora ela estava
suspensa no ar, olhos arregalados, braços esticados. Seu corpo girava
lentamente.
– Acabou para ela. – disse a demônio.
Nesse momento, todos os espíritos presentes ali começaram
a dizer, em uníssono, o nome da bruxa. Christine...
Christine... Christine... O corpo dela foi descendo bem devagar. Quando
tocou o solo da floresta, todos os que estavam ao seu redor e as sombras de
outros seres, que só naquele momento pude distinguir, avançaram sobre seu
corpo, destroçando-a.
Aquela visão lembrou-me de uma memória esquecida. Um
encontro que tive, certa vez, com uma das vampiras que cedera seu sangue para
minha criação. Não fora algo agradável na época em que ocorreu... Também não
era agradável ver o que estava vendo...
***
– Olá, velho amigo! Vejo que tem feito bom uso do amuleto
que te dei. Posso vê-lo?
– Infelizmente, não. Não queria perde-lo, então,
guardei-o bem. – o homem desabotoou a camisa e mostrou uma pequena, porém
visivelmente profunda, cicatriz.
– E o que você pode contar-me que aprendeu com esse
presente?
– Que devemos ter cuidado com o que pensamos.
Ela riu, assentindo com a cabeça.
***
–
Aí está você... – disse Daemy, desviando minha atenção da bruxa.
Era Flourbe que voltara e estava acompanhado de uma
mulher.
– Sou Lishva. Vocês procuravam por mim.
Daemy e eu, levantamo-nos e seguimos o caminho que ela
nos indicava. A necromante era de uma beleza singular, de estatura mediana,
pele de um moreno-esverdeado, olhos e cabelos negros. Sua voz era suave e seus
gestos seguros.
Chegamos a um resto de fogueira em meio a mata. Ela
indicou-nos os troncos caídos e raízes que nos serviriam de assento.
– Meu velho amigo já me falou o que os traz aqui. –
iniciou Lishva. – Mas o que exatamente deseja de mim, senhor Harks?
– Aquele que me tornou ISSO ainda está livre.
– Você quer vingança!
– Não quero que outras pessoas passem pelo que passei.
Não quero que minhas protegidas tenham que se esconder, como eu tive. O mundo
não precisa ser dividido.
– Mas é! – disse Daemy, ao meu lado.
– Susan, o que você quer não acabará com sua dor. –
pronunciou-se Flourbe. – Não mudará o que você fez.
– Anthonie... – refutei. – A hora é derradeira. – disse
com toda a segurança que ainda tinha. Estava prestes a ruir. Será que todo o
meu esforço fora em vão?
– Susan, quando aceitei participar da empreitada de sua
prima Anne, foi porque percebi que o amor que dela motivava os riscos... Ao
longo desses anos, vi você crescer em sua nova forma existencial. Sei dos erros
que cometeu e nego-me a aceitar que seu motivo consciente seja apenas vingança.
O motivo real está aí, – ele apontou-me o peito – consigo senti-lo, mas
enquanto você não o conhecer, não poderei saber do que se trata...
– Anthonie... – relutei.
– Não! Não a abandonarei, querida Susan, mas não lutarei
pelos motivos que você afirma.
– Senhor, senhoras... – disse a necromante, retomando o
motivo de nosso encontro. – Devo concordar que a hora de agir aproxima-se.
Então, acalmemos nossos corações e voltemos ao que interessa. Mas antes... –
ela virou-se para olhas os altos galhos de uma árvore. – Olá! É estranho ver um
elfo negro por aqui... Será que Naëlithy aprova suas atitudes, Ernëw?
As folhas do galho, para o qual ela olhava, moveram-se e,
em seguida, outros em árvores que se distanciavam. O intruso havia partido.
– Por isso devemos agir. – disse a necromante olhando-me.
– Você causou isso, minha bela e inocente jovem. Nos resta tentar reverter o
final... Descansem, por hoje. Iniciaremos nossa jornada de volta assim que o
sol se pôr. Se bem conheço aquele contra quem você quer lutar, ele já começou a
agir.
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