Um amigo morre - Parte II


                 Nosso meio de transporte corria em seu ritmo tranquilo, o que não se podia dizer dos passageiros que estavam nele. Gritos ecoavam, mais altos que o som do maquinário, cada vez que relâmpagos e trovões mostravam-se para nós.
            A tempestade havia começado pouco depois que partimos e, na escolha do maquinista, entre parar e seguir, continuar seu caminho era a melhor decisão.
            Estávamos todos na mesma cabine e, apesar do alvoroço no exterior dela, o que imperava em seu interior era o silêncio. Eu mesma não estava ali, minha mente fugia para algum momento no passado.

***

            – Susy, se você continuar negando alimento, morrerá.
            – Não posso alimentar-me disso.
            – Mas é a sua vida agora, saciar-se disto. – ele oferecia-me a taça cheia que estava em sua mão.
            – Não! Deve haver outro modo! Algo menos animalesco.
            – Susy, não irei mais insistir, por hoje. Deixarei a taça aqui. Talvez em minha ausência você alimente-se. – e, dito isso, saiu.
            Não queria ceder àquele ímpeto. Não queria ser dominada por ele. Ver aquele frasco cheio de sangue humano tentava meu lado vampírico e, ao mesmo tempo, causava horror ao lado humano que tentava preservar. Saber que era o sangue de Douglas deixava-me mais transtornada ainda. Não queria alimentar-me dele, mesmo com meu corpo já demonstrando estar debilitado.
            Certo dia, ele entrou em meu quarto com um prato tampado em uma das mãos e a taça na outra.
            – Trouxe algo que quero que você experimente.
            – O que é?
            Ele pousou a taça de sangue sobre meu criado-mudo e destampou o prato, revelando um esquilo marrom. Ao seu lado havia uma pequenina poça de sangue.
            Olhei-o atônita e ele, em silêncio, ofereceu-me a bebida. Tomei-a e bebi, sentindo-me um pouco melhor por não ter sido algo semelhante ao que algum dia eu fora.
            Permaneci nessa dieta de sangue de pequenos animais por dois meses, até que ele revelasse-me que o fluido não era somente de bichos, mas também o dele. Quando soube disso, imediatamente fui invadida por uma ira profunda e irracional. Veio-me à mente a fisionomia de meu criador. O olhar penetrante e cheio de vaidade de um homem que conseguiu satisfazer-se em uma mulher. Sua boca entreaberta, proferindo todas aquelas palavras. Uma mistura do meu sangue e de meus irmãos.
            Saltei da cama, correndo pelo corredor até o chafariz do jardim. O mesmo local em que, em um passado, agora, longínquo, Douglas e eu conversamos pela primeira vez. A moça frágil e o rapaz com futuro bem-sucedido. O que nos tornamos...
            Voltei a negar alimento e enfraqueci. Não adiantava o que Flourbe falasse-me, nem as juras de Douglas de que eram apenas bichos dessa vez. Não conseguia conceber a realidade de que o sangue humano era a minha dieta principal. Até que, quando estava quase delirando, meu corpo gritando para saciar meus instintos, ouvi vozes conhecidas.
            – Você deve agir... Eu não posso, meu sangue é contaminado.
            Queria retrucar, dizer que não, mas não tinha forças. Senti algo húmido encostando em meus lábios, ao mesmo tempo em que aquela famigerada sensação preenchia-me. Agarrei a fonte do alimento com as forças que tinha e com a ferocidade de minha nova raça. Abri os olhos e meu olhar encontrou o de Douglas Stanner. Uma lágrima escorreu por minha face, mas não o soltei até o momento limite. Saciei-me, contudo, meu lado humano não permitiria matar meu amigo.
            Flourbe segurou-o quando o soltei. Estranhamente, Douglas sorria, seu semblante era de felicidade.
            Dias passaram-se, e como voltei a minha dieta especial, sentia-me forte e saudável.
            – Querido, não gosto de alimentar-me de você.
            – Já conversamos sobre isso, minha amada. Alimento-te com prazer, apenas por vê-la bem.
            – Mas...
            – Mas preciso entregar-te algo. – disse, enquanto retirava, de sua maleta, um livro envelhecido e oferecia-me.
            – O que é isso?
            – Algo que há muito está comigo, mas que acho que será melhor utilizado por você.
            Olhei bem para a capa marrom envelhecida e, em seguida, para Douglas. Ele assentiu-me com a cabeça.
            – É o diário?
            – Sim. Peguei-o antes de sair do grande salão. Estava no bolso do casaco de Thompson.
            – Ele levava-o sempre consigo. – sorri com a lembrança dos mistérios que Richard fazia acerca de suas anotações.
            – É seu, para ajudar em sua busca. Não o li.
            – Então, leia-o. Ficará com você para que me ajude em meu caminho. Confio em você, meu conselheiro.
            – Como desejar, minha amada. – ele sorriu, levantando-se da cama para retirar-se do quarto. – E não se preocupe, se não quiser alimentar-se de meu sangue, conseguirei um modo de que consuma sangue humano.
            – Como?
            – Entrarei em contato com conhecidos de hospitais.
            – Agradecida!
            – Sempre penso em seu bem, queria Susy! – ele beijou-me a testa e saiu.

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