O passado cerca-nos - Parte I



          Aquela noite ainda me causa arrepios... Como ela pode... Minha irmã querida... Minha mestre...
            Era uma noite escura, com uma tempestade furiosa que nos alertava do que viria... Ela surgiu em meio a luminosidade dos raios e, em uma explosão de coragem e ousadia, atacou-nos, sozinha. Fomos pegos de surpresa por sua voracidade. Metade de meus homens de confiança caíram facilmente... Incapazes...
            Ela atravessou os jardins e os salões, sem que ninguém a pudesse parar. E alcançou-nos na alcova de minha amada irmã... Defendemo-nos e poderíamos tê-la derrotado... Éramos mais fortes... Os nobres de nosso clã... Contudo, minha mestra não permitiu que a massacrássemos. Não entendo porque ela encantava-se com aquela noiva traidora...
            Desde que a levei a nosso castelo, surgiu nos olhos de minha irmã uma luz diferente... Fazia questão de vê-la todos os dias e sorria toda vez que era comentado, entre nossos irmãos, o porquê de ela estar ali.
            Fora minha mestra que sugerira que ela deveria ser transformada... E de um modo inovador, até para nós.
– Isso não fará diferença! – lembro-me de que Austin havia sido contrário à ideia. – Bertrand continuará sendo o mestre dela. Afinal, todos temos o mesmo progenitor.
Ela apenas sorria.
O assunto fora deixado de lado por alguns dias. Ela conhecia-nos melhor do que imaginávamos... Por fim, aceitamos e, mesmo a contragosto, Austin participou do experimento.
Ela colheu nosso sangue e o levou a seus aposentos. Retornou quando o sol estava prestes a pôr-se e passou por nós sorridente, entrando na alcova de minha futura noiva. Quando alcançou a porta para abri-la, virou-se e olhou-nos com um olhar congelante que somente ela tinha.
– Não importa o que ouçam, não atravessem essa porta!
Os momentos que se seguiram foram estranhos, até para nossos longos anos. Com nossa experiência, sabíamos que, quando alguém é transformado, há gritos, dor, silêncio e renascimento. Mas os sons que saiam daquele quarto eram ora como pensávamos, ora atormentadores... Primeiro veio o silêncio... Um silêncio gélido que afetaria qualquer ser de sangue quente. O diferente é que o silêncio prolongou-se por todo aquele dia.
Estava inquieto... Normalmente já haveria ocorrido a transformação completa. Será que algo dera errado?... Quando já estava a ponto de bater à porta, houve o grito... Um grito profundo... Um grito de morte... Agora está transformada, pensei...
Então, veio o estrondo de ossos quebrando, tecidos sendo rasgados e o cheiro... Um misto de podridão mortífera e sangue novo, quando recém jorra das veias... O que acontecia?...
Novamente o silêncio reinou naquele local... A porta abriu-se e minha amada irmã saiu.
– Ninguém entra, até que eu permita... – e seguiu para sua alcova.
Mais tarde, naquela mesma noite, ela recolheu nosso sangue, outra vez, e se fechando em seus aposentos, só saiu com o pôr do sol.
Passou por nós, com um sorriso nos lábios, em direção à habitação de minha noiva e lá se encerrou. Os gritos e silêncios repetiram-se, contudo, dessa vez, sem os sons de ossos quebrados nem cheiro de podridão... Apenas os gritos estenderam-se mais que antes e o odor, agora, era de alguém sendo queimado... O que você está fazendo?... Ao final, o silêncio voltou e minha mestra saiu do quarto.
A coleta de nosso sangue foi feira mais uma vez e tudo sucedeu-se como nos dias anteriores. No momento em que os raios solares despediam-se daquele dia, minha irmã saiu de sua alcova e ingressou na de minha noiva. E, nessa noite, tudo se passou como conhecíamos... Gritos, gemidos de dor, silêncio...
A porta abriu-se e minha mestre surgiu sorridente.
– Venham! Conheçam nossa nova irmã... Sangue de nosso sangue... Filha de nosso mestre... Uma Wasphörswns de puro sangue...
Entramos na alcova e lá estava ela... Desmaiada, como todos que renascem... E bela... Bela como era minha mãe em sua vida mortal, como é minha irmã em seu presente da noite... Minha noiva... Agora, era de fato, minha noiva...
Fiquei incumbido de alimentá-la, pelos dias que se seguiram, com uma mistura de nosso sangue.
– Assim, – disse-me minha mestra – ela se fortalecerá e irá costumar-se melhor com seu novo alimento. Depois, comece a oferecer alguns camponeses à vez.
Mesmo sendo meu o dever de cuidá-la, minha irmã não a deixou, momento algum, só. Estava sempre em sua alcova a observá-la, quando estava adormecida, ou a espreitá-la, quando estava acordada.
Tudo aparentava estar caminhando bem, mas minha mestra e eu sabíamos que, a minha noiva, aquela situação não era agradável... Seus olhos frios desdenhavam-nos, odiavam-nos...
Um dia, ao entardecer, senti algo corroer-me o peito. Levantei-me de meu descanso e vi minha amada irmã junto a uma das janelas do salão do segundo andar. Aproximei-me e, do alto, vi-a correndo pela floresta.
– Deixe-a ir. Ela voltará. – disse-me a voz suave de minha mestra.
– Você tem certeza de que não há perigo? – relutei.
– Você viveu demais para saber lidar com perigos, meu irmão. – ela sorriu-me.

***

Maldiva, que falta você faz-me. Foi doloroso vê-la sucumbir nas mãos de quem você ajudou a criar. O tempo não destruiu nosso laço, minha mestra.

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