Susan Harks - XI - XII - XIII




É CHEGADA A HORA!



            Quando se aproximou a hora do jantar, já estávamos todos prontos. Tentamos ser discretos em nossas ações e com o material que levávamos. Primeiro, porque não queríamos ter que responder a qualquer interrogatório que fosse. Segundo, porque, depois do ocorrido da manhã, An e eu passamos a imaginar que o dono da hospedagem expulsar-nos-ia a qualquer primeira oportunidade. Foi este, também, o motivo que fez Anne guardar as chaves de nossos dormitórios consigo.
             Ficamos reunidos em nosso quarto, esperando que Flourbe, o qual ofereceu-se para ficar à porta da estalagem, retornasse avisando da chegada do doutor.
            – Como está? – perguntou Richard, aproximando-se de mim junto a janela, onde observava a inquietante dança dos flocos de neve.
            – Agora, estou bem. – respondi, sentido que Douglas também aproximava-se por meu outro lado.
            – A sensação de tontura passou completamente? – acenei um sim com a cabeça, ao que sussurrou-me ao ouvido – Deve ter sido algo momentâneo...
            – Senhor?! – protestou Douglas.
            – Certas sensações de vertigem são melhores do que constantes calmarias. – continuou Richard, fingindo não ouvir a reclamação do cavalheiro à minha direita.
            Douglas segurou meu braço, como que querendo lembrar-me de que estava ali... Estava no centro de um campo de batalhas... Meu passado cercava-me por ambos os lados... Começaria a sufocar, caso não reagisse... A muito abandonara esses posicionamentos que passavam, agora, em minha mente. Não era mais este tipo de mulher...
            Em um impulso íntimo, soltei-me de Stenner e de Thompson e distanciei-me. Meu sentimento mais vivo lembrava-me de que nunca mais deveria voltar a ser uma peça nesse tipo de jogo...

***

            Flourbe bateu à porta. Doutor Volter esperava-nos com uma carruagem. Fomos a seu encontro silenciosamente e, apenas, quando já nos havíamos colocado a caminho, Volter pronunciou-se:
            – Tudo está arranjado?
            Anne acenou com a cabeça... Estávamos prontos, mas nossos corações estavam apreensivos. Não sabíamos o que ocorreria e a espera seria longa...
            Flourbe, que estava ao meu lado, aproximou-se mais e sussurrou:
            – Acalme-se... Seus pensamentos estão conturbados. Isso seria um problema para nossos planos.
            Olhei-o e sua face era serena. Sorri, demonstrando que tentaria acalmar-me.
            A carruagem seguia em um leve trote, percorrendo ruas cheias de neve e iluminadas pela luz amarelada dos lampiões a gás. Aproximamo-nos de uma grande murada, que aparentava ser pintada de vermelho, e nosso transporte diminuiu a velocidade. Paramos pouco depois do grande portal que dava acesso ao local. Ali estavam dois guardas à postos.
            Esperamos o horário de troca da segurança e, quando percebemos sua movimentação, descemos da carruagem e nos dirigimos para o portão, escondidos pela sobra que a muralha produzia. Em um momento de distração dos guardas, entramos...
            Corremos por uma ampla ponte e adentramos outro portão. O local era um amplo pátio, com construções imponentes, que tinham janelas altas, portas largas e torres robustas. Um dos prédios parecia uma igreja. Seguimos para lá, para esperarmos o amanhecer. Ficaríamos escondidos naquele lugar durante toda a noite.

***

            – A senhorita deve acalmar-se. – sussurrou Flourbe, ao meu lado – Seus pensamentos não a ajudarão. A senhorita precisa concentrar-se em suas defesas e no que deve ser feito.
            – Se ocorrer alguma coisa...
            – Se ocorrer alguma coisa, – interrompeu-me – a senhorita tenha-me em seus pensamentos. Irei ajudá-la no que precisar.
            – Há coisas que deveria resolver...
            – Doutor Stenner sabe. Ele poderá ajudá-la.
            – O senhor acredita?
            – A senhorita passou por muito em sua vida. Criou desconfianças demasiadas... A senhorita é mais forte e capaz do que imagina. Não se deixe abater por suas dúvidas.
            Floube observava algo a sua frente. Segui seu olhar e vi Richard, próximo a uma fresta de luz, escrevendo em seu bloco de notas. Automaticamente, Thompson ergueu os olhos, como se sentisse nossos olhares sobre ele, fechou o bloco e guardou-o.
            Observei Douglas, cabisbaixo, e Abhram Volter próximo a uma das janelas, observando o que acontecia fora daquele lugar. Por fim, virei-me para An, ao meu lado, e nossos olhares cruzaram-se, denunciando a ansiedade que crescia cada vez mais em nossos peitos.

***

            As horas arrastavam-se. Todos começaram a ficar inquietos. A noite, lá fora, era silenciosa e nossos anseios calavam-nos as expressões.
            Contrariando as posições estáticas em que estávamos, Richard levantou-se do local onde estava, próximo a janela, e veio em minha direção. Ajoelhou-se ao meu lado e disse:
            – Há algo comigo que quero que seja seu, caso alguma coisa aconteça-me hoje.
            – Richard...
            – O que há nele ser-lhe-á útil. – continuou, erguendo-se.
            Observei Thompson afastar-se. Não queria questionar-me o porquê daquelas palavras... Flourbe olhou-me...
            – Não é momento passa esse tipo de pensamento. – sorri, ao que ele acenou concordando.

***

            Finalmente, a imagem que víamos pela janela dava indícios de que logo amanheceria. Volter sinalizou-nos, para que saíssemos, enquanto ainda havia pontos de sombra para disfarçarmo-nos.
            – Irei na frente. – disse ele – Sigam-me em silêncio e mantenham-se escondidos.
            Seguimos pela direita da Igreja, primeiro em linha reta, por aproximadamente dois quarteirões. Depois viramos à esquerda, em um local que parecia os fundos de um prédio aristocrático.
            De repente, ouvimos o som pesado de botinas contra as pedras do pavimento. Era algum soldado fazendo ronda por aquele local. Aproximamo-nos ainda mais da parede que nos escondia, a qual produzia uma larga sombra em degradê, para permanecermos não visíveis.
            Os passos aproximaram-se cada vez mais... Foi quando surgiu um guarda, andando compassadamente. Ele parou, olhou em nossa direção e seguiu com sua ronda. Respirei aliviada, quando me dei conta de que ele não nos havia percebido ali.
            Continuamos seguindo o trajeto que doutor Volter trilhava e viramos à esquerda, novamente, entrando em uma via ainda mais escura que a anterior. Era uma estreita rua entre duas construções. Volter parou... À sua frente, havia uma porta.
            Poucos minutos passaram-se até a porta abrir-se. Abhram Volter entrou primeiro, seguido por nós, em fila. Atrás da porta, protegendo-se da fria luz do sol, que já despontava alto, estava Anry.
            A sensação que me abatia durante toda a noite, era, agora, mais forte, como se alguém me observasse muito de perto e com muito interesse.




NO TERRITÓRIO INIMIGO



            Depois de todos entrarmos, Anry fechou a porta. O apertado corredor era de um breu temível. Um arrepio subiu-me a espinha, estimulado por algo parecido a um toque de pele, contudo, terrivelmente gélido... Flourbe tocou-me o ombro, sua mão era quente e firme. Segurei-a e seguimos, de mãos dadas, por aquele longo corredor enegrecido, tendo Anry como guia.
            Ao final do corredor, descemos uma escada que levava a um amplo salão, iluminado por algumas poucas tochas, que produziam desenhos, em tons amarelados, pelas paredes mais próximas. Conforme descíamos, crescia um odor que, inicialmente, assemelhava-se a mofo, mas que, apurando-se melhor o olfato, denunciava um cheiro de antiguidade. Era uma sensação de que aquele ambiente havia sido esquecido há séculos...
            Caminhamos pelo salão silencioso, em direção oposta a escada a qual descemos, até uma nova passagem e um novo corredor. Anry pegou uma das tochas para iluminar-nos o caminho. Atravessamo-lo cautelosamente... O odor apurava-se...
            Chegamos a um novo salão, tão amplo quanto o primeiro. Contudo, este possuía artefatos distintos. Era cheio de caixotes de madeira, que se assemelhavam a caixões. Estavam dispostos em duas fileiras, com um amplo corredor entre eles. Passamos por entre eles, cuidadosamente... Nenhum deles era o nosso alvo...
            Adentramos um novo corredor, com portas à direita e à esquerda... Podia-se ouvir uma leve respiração do que, talvez, fossem crianças dormindo... Seguimos até o seu final, onde havia uma porta semiaberta... Aquele era o local...

***

            Meu coração, cada vez mais, acelerava. A sensação de angustia e de ser observada atingia-me por todas as direções... Flourbe, que ainda segurava minha mão, apertou-a.
            Entramos naquele novo cômodo. Este era menor e completamente tomado pela escuridão e pelo odor envelhecido. Nele havia um único caixão de madeira escura, disposto no centro do ambiente.
            Aproximamo-nos dele, posicionando-nos em uma meia lua, ao seu redor. Anry entregou a tocha à Volter e preparou-se para abrir o caixão... Estávamos, definitivamente, expostos às hipóteses geradas pelos estudos do doutor...
            Quando Anry Ross levantou a tampa e Abhram Volter iluminou seu interior, tivemos uma terrível surpresa... Bartholomeu Bertrand não estava lá...

***

            – É dia, ele não poderia sair, não é? Tem que estar em algum lugar aqui dentro! – disse Anne.
            Anry sinalizou para que ela silenciasse. Suas feições indicavam que estava tentando ouvir algo. Provavelmente algum som inaudível para quem não pertencesse àquele mundo.
            – Não consigo identificar nada. – disse ele, por fim.
            – Vamos brincar com suas crias. – sugeriu Richard – Quem sabe assim ele aparece?
            – Já que viemos até aqui, devemos fazer algo. – concordou Douglas.
            Flourbe apertou minha mão novamente. Era um sinal de que não haveria volta. Eu deveria preparar-me e conter meus pensamentos... Um novo arrepio subiu-me a espinha, para lembrar-me de uma voz que girava em meus pensamentos desde a noite anterior... Uma voz suave, mas firme... Uma voz sedutora...
            Saímos daquele local, percorrendo novamente todo o caminho até o salão em que estavam os caixotes de madeira. Enfurecidamente, como que querendo tornar-se um herói naquela empreitada, Richard começou a abrir os caixões. Douglas ajudou-o. Mas, para nosso espanto, esses também estavam vazios.
            Anry aproximou-se de Anne e pegou-lhe a mão... Quando ouvimos as primeiras risadas ecoarem pelo ambiente, ele já corria com An de volta para o primeiro salão, o mais amplo. Conforme corríamos, um misto de risos e grunhidos perseguia-nos. Senti unhas arranharem-me e vi olhos surgindo das trevas, em todas as direções.

***

            Quando chegamos ao grande salão, Anry e An estavam cercados. Ele estava em posição defensiva, mantendo-a à suas costas, tentando protegê-la de três moças extremamente alvas, duas morenas e uma ruiva.
            Atrás de nós, chegaram mais vampiros. Doze pelo que consegui contar... Não houve tempo para pensar. Fizemos uso de tudo o que tínhamos, apegando-nos a uma vã esperança de que funcionassem.
            Richard, que estava com um facão, foi o primeiro a atacar, decapitando um homem alto e forte. Douglas ateou fogo em um jovem loiro e magrelo. Volter usava água benta para tentar desnortear as criaturas e estacas de madeira para combate-las. As tentativas do doutor não estavam surtindo efeito. Contudo, Thompson, Stenner e Flourbe, que portava uma espada, saiam-se bem.
            Eu tinha em minhas mãos um crucifixo e dei-me conta de que isso de nada adiantaria, quando fui puxada para as sombras que uma das tochas, fixadas nas paredes do local, produzia. Debati-me até conseguir visualizar meu agressor. Era uma mulher negra, de cabelos volumosos. Sua beleza era estonteante... Teria admirado-a por mais tempo, se ela não houvesse investido outro ataque. Tentei desviar-me e ambas caímos. Girei o corpo, para escapar, mas ela agarrou-me o tornozelo com tanta força, que, por instinto, gritei de dor. Rapidamente, ela reposicionou-se para dominar-me. Procurava, em minha mente, alguma forma de interromper-lhe um novo ataque... Quando ela lançou-se, minha mão agiu por impulso de sobrevivência. Não sei de onde surgira tanta força... Voltei a mim, quando senti o respingo de seu sangue em meu rosto. Olhei-a e o crucifixo que estava em minha mão, agora estava cravado em seu pescoço.
            Imediatamente, retirei-a de cima de mim... Ela contorcia-se... E, quando levantei-me para afastar-me dela, a vampira negra segurou novamente meu tornozelo. Ainda havia força para tentar puxar-me... Não conseguia mover-me... Ela mostrava-me suas presas em tom ameaçador... Desviei meu peso para a perna que ela segurava, equilibrando-me, e, com o outro pé, terminei de cravar-lhe o crucifixo. Ela soltou-me, contorcendo-se... Abaixei-me ao lado dela, segurei-lhe a cabeça com uma das mãos e, com a outra, puxei o crucifixo, com toda a força que me surgira, rasgando-lhe o pescoço de uma das orelhas até metade da garganta... Seu sangue escorria... Ela parou de mover-se.
***

            Um grunhido alto e o som de algo quebrando-se tirou-me do frenesi de meu ato. Virei-me e vi Volter caído. À sua frente, de costas para mim, estava um homem loiro, vestido com uma longa capa preta. Em sua mão havia algo vermelho, pulsando... Demorei a entender o que era... Ele virou-se para mim, seus olhos profundos eram de um vermelho vivo. E olhando-me fixamente, cravou suas presas no coração do doutor. Às suas costas, suas crias alimentavam-se do corpo de Abhram Volter.

***

            Meus olhos percorreram o local a procura de Anne. Foi quando vi Anry arremessar uma das vampiras, que os atacavam, contra a parede e correr enfurecido na direção de Bartholomeu. Corri para o lado de An... Ela estava paralisada... Nesse momento, dei-me conta de dois corpos decapitados próximos a ela. Provavelmente, Anry o teria feito em sua tentativa de protege-la. Abracei-a e voltei a observa-lo. Ele e Bertrand digladiavam-se. O som que produziam ecoava fortemente pelo salão e seus movimentos eram tão rápidos que quase não se sabia quem estava em vantagem.
            De repente, Anry voou para nosso lado. Ele caiu, deslizando pelo chão de pedra. An correu até ele e, antes que pudesse segui-la, Bartholomeu ergueu-a e jogou-a para o lado, retirando-a de seu caminho. Em seguida, colocou um pé sobre o ombro de Anry Ross e segurou-lhe a cabeça. Com um único impulso, invisível a meus olhos, a cabeça e o corpo do marido de minha prima estavam separados.
            Anne gritou desesperada ao dar-se conta daquela cena. Ela levantou-se de onde havia caído e correu para seu amado. Bertrand parou-a, segurando-lhe o braço, e falou algo ao seu ouvido... Lágrimas escorriam por seu rosto... Bartholomeu soltou-a e, antes que ela esboçasse qualquer reação, torceu-lhe a cabeça.

***

            Ver minha prima caindo morta foi atormentador... Tentei correr para seu lado, mas algo impedia-me... Era Richard que segurava-me, tentando manter-me afastada de Bertrand. Ele enlaçava seus braços ao redor de minha cintura e, em meio a todo o desespero que surgira em mim, senti seus braços se contraírem e, em seguida, relaxarem. Não podia virar-me, mas vi suas mãos soltarem o facão que segurava...
            Seu corpo caíra ao meu lado. Seus olhos fixos em mim... Virei-me e vi-o olhando-me. Sua pele branca como o gelo e seus olhos vermelhos... Compenetrantes... Próximos... Senti uma dor aguda... Flourbe, pensei... Gotas de sangue pingando, de sua boca, em meu rosto... Tudo escureceu.




EPÍLOGO



            Minha garganta ardia e meus olhos doíam.
            – Tome isso. – disse uma voz áspera, enquanto alguém encostava algo fino como a borda de uma taça em meus lábios.
            Era um líquido espesso, dificultando-me para engolir. Mas quem segurava o recipiente fez-me bebe-lo todo.

***

            Demorei dias até acostumar-me a minha nova visão... As minhas novas necessidades. Não tinha noção de tempo. Não sabia onde estava. Foi, então, que reconheci quem me alimentava.
            – Por que me mantém viva?
            – Você não está viva. – respondeu ele, com um largo sorriso.
            Um turbilhão de pensamentos passava por minha cabeça.
            – Você destruiu minha esposa preferida. – continuou ele – Agora, você é minha... É igual a mim...
            – Sou uma de suas criaturas, você quer dizer. – meu raciocínio começava a voltar.

            – Não... O sangue que te transformou não é apenas meu... Alimentei-lhe com uma mistura do meu sangue e do de meus irmãos. Somos todos filhos de pais diferentes. Você foi alimentada com sangue de vampiros antigos... É uma vampira e não uma serva.

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