O Deus Adormecido

 



    Yelina só percebeu a dor que sentia nas pernas quando chegou ao topo do templo. Não havia tempo para descansar. Correu para esconder-se atrás do altar, puxou sua adaga e esperou. Ouvia os passos desajeitados de seu perseguidor subindo as escadarias. Ele começava a se aproximar do altar, segurando seu tubo cuspidor de fogo, quando a sacerdotisa cravou a adaga em seu joelho. A dor o fez largar do tubo no chão, mas a mão pesada da criatura conseguiu agarrar-lhe os cabelos. Yelina não se abalou. Aproveitou a abertura que seu inimigo havia deixado para cravar a adaga, agora no pescoço, e o sangue do invasor espalhou-se pelo chão do Templo, jorrando sobre ela. “É vermelho”, Yelina pensou. “O sangue desses monstros é igual ao nosso.” 

Correu para o santuário sagrado do patrono de seu povo. Ao lado da casa de Tlaloc, soberano da chuva que abençoava os campos, estava a casa de Huitzilopochtli, o Colibri Azul. Seu corpo estremeceu, as dores do esforço e o cansaço começaram a tomar-lhe as forças. Atravessou o pátio, passando pela estátua do Deus da Guerra, escondendo-se lá. Começou a bater no chão com o calcanhar. Um daqueles blocos de pedra era, na verdade, um alçapão, e ela precisava encontrá-lo o quanto antes. 

O som de metais chocando-se contra o chão de pedra anunciou que outros invasores haviam alcançado o topo do templo. Ela permaneceu em silêncio, batendo no chão com o punho fechado, até achar o bendito alçapão. Haviam duas reentrâncias no bloco onde ela poderia encaixar as mão e puxar, mas o som da pedra sendo movida alertou os perseguidores. Eles a encontraram bem no momento em que ela estava entrando no buraco. Sem escolha, ela teve que ignorar os degraus de pedra e pular escuridão adentro.

A queda foi mais longa do que gostaria. Teve sorte por não ter quebrado as pernas, mas a dor era muito grande, e ela precisaria de um tempo para se recuperar. Ao menos, ela sabia que os invasores demorariam para chegar até ela. Precisava desse tempo como uma vantagem, então começou a andar, mais compassadamente, tateando as paredes pela escuridão, até começar a ver nesgas de luz. Estava aproximando-se da escada espiral. Estava se aproximando Huitzilopochtli.


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A escadaria era cravada nas paredes de um enorme fosso. Yelina pensou por um instante na estupidez que era subir tantos degraus do lado de fora do Huey Teocalli para depois descer tudo de novo. As paredes estavam todas gravadas com a história dos astecas, desde a saída de Aztlan, guiados pelos presságios divinos, até encontrarem a águia do Deus da Guerra pousada em um cacto. Ali começaram a erguer a grande cidade, Tenochtitlán, o centro de tudo. Foi a fé que levantou aquela cidade maravilhosa, e seria a fé que também salvaria. 

À medida que descia, ficava mais difícil enxergar. Haviam tochas espalhadas ao longo das paredes, mas Yelina temia acendê-las e denunciar sua posição aos inimigos. Teria que usar seu conhecimento para superar aquela travessia, afinal, já desceu ali uma vez, quando seguiu o Alto-Sacerdote através daquela passagem secreta. Na ocasião, o Alto-Sacerdote e o Imperador haviam discutido sobre a presença dos estranhos que haviam chegado do mar. Enquanto o Imperador acreditava que aquelas criaturas eram emissários divinos, mensageiros da Serpente Emplumada, o Alto-Sacerdote dizia que eles eram um presságio de ruína. Mais tarde, os presságios de ruína se provaram verdadeiros: primeiro com a febre maldita trazido do além mar, depois com a traição dos intrusos, que se aproveitaram da ingenuidade do Imperador para se infiltrar na cidade e, finalmente, com a guerra.

Em dada noite, o Alto-Sacerdote abriu o alçapão, acompanhado de um caçador jovem, e ambos desceram as escadas até o fundo do templo. Yelina trilhava o mesmo caminho dos dois agora. Ela lembrava de ouvir o sacerdote dizer para o rapaz que “o sacrifício de um poderia salvar todos.” Ela viu os dois homens passando por uma grande porta de pedra. Lembrava da sensação que teve quando o Alto-Sacerdote abriu aquela porta, da brisa morna que soprou pelo corredor, do cheiro estranho, que ela não conseguia descrever. Os dois passaram por aquele portal. Apenas o sacerdote voltou.

Ouviu passos acima, no topo da escadaria. Pelos sons metálicos, com certeza eram eles. De repente, luzes. Estavam acendendo as tochas. Ótimo. Começou a apressar o passo. Enquanto eles acendiam seu caminho, ela já estaria longe.

De repente, Yelina viu uma tocha cair ao lado dela. Não havia entendido bem o que era aquilo, quando uma segunda tocha passou, acompanhada de uma explosão.

Sentiu o braço arder em chamas. Os invasores a ouviram gritar de dor, e o fosso acabou sendo preenchido pelas gargalhadas daquelas bestas. Eles desistiram de acender as tochas; agora corriam com elas nas mãos, descendo desabalados para pegá-la. Sangrando como estava, Yelina sabia que deixaria um rastro para eles seguirem. Tinha que ser rápida, ou bolar um bom plano.

Sua mente estalou. Talvez o rastro de sangue fosse a vantagem que precisava.

Ela terminou sua descida e começou a caminhar na direção da porta do vento morno. Tinha que manter-se à frente dos invasores para o plano dar certo. Ela lembrou de um trecho do caminho que o Alto-Sacerdote e o caçador passaram encostados nas paredes, evitando passar pelo centro do corredor. Yelina corria para esse lugar, tentando ignorar a dor e a exaustão. Deixava o sangue escorrer solto pelo braço. Ele sairia a trilha que seus inimigos buscariam. Ele seria a isca.

Yelina chegou ao corredor. A sua frente, a grande porta de pedra, e a brisa morna que soprava dela. Não havia reparado antes, mas o entalhe na porta era em forma de uma serpente com a cabeça curvada, como o cajado de Huitzilopochtli. Ela encostou-se na parede e foi passando pelo lugar. Olhava fixamente para o chão e não percebia nada demais ali. Ela chegou em frente a porta bem no momento que os invasores chegaram ao corredor. 

O sopro de fogo atravessou do lado esquerdo de sua barriga. Seus olhos reviraram-se e ela caiu. Quase perdeu a consciência. Os invasores gritaram alguma coisa na língua deles. Eram três, uma fração apenas do grupo que a seguiu. Ela não tinha forças suficientes para reagir. Os três avançaram em sua direção, mas quando puseram os pés sobre o chão de pedra, este se abriu no meio, revelando uma armadilha escondida. Ela ouviu os berros de dor daquelas criaturas de rostos peludos, e suas roupas de metal não foram suficientes para evitar que as estacas de madeira atravessassem seus corpos. Seu plano havia dado certo.

Mas ela estava morrendo.


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Não foi difícil para Yelina achar o mecanismo que abria aquela porta. Depois de acionado, era só empurrar, com um pouco de força, que ela poderia atravessar. Mas o menor esforço fazia todo seu corpo berrar de dor. Rasgou parte de sua vestimenta e fez um torniquete no ferimento da barriga. Ela não podia morrer agora. Não quando estava tão perto.

Yelina conseguiu abrir a porta. A câmara onde estava agora era circular, com uma espécie de cama de pedra no centro. Sobre a cama, o corpo de um homem repousava. Ao lado, vários cadáveres jaziam. Yelina estava em choque. Alguns eram tão antigos que não havia mais pele sobre os ossos ressequidos. Outros eram mais recentes, com a carne apodrecendo, deixando o lugar com aquele cheiro terrível de degradação. Todos portavam adagas. Yelina aproximou-se da cama, e percebeu que o corpo mais próximo, caído no chão, era do Alto-Sacerdote. Ele também sacrificou sua própria vida pela chance de salvar todo povo asteca. 

Se tantos, e tão poderosos, haviam dado suas vidas para o Deus, e mesmo isso não foi suficiente para trazê-lo de volta, porque justo o seu sacrifício seria?

Ela aproximou-se da divindade. O corpo de Huitzilopochtli era imponente, gigante, quase todo coberto por penas azuis, exceto pelos pés, mãos e cabeça. O Cetro em Forma de Serpente repousava ao lado. Yelina viu o peito do Deus subir e descer, uma respiração forte e profunda. Ele estava dormindo. Seu povo sendo massacrado, e seu Deus estava dormindo.

Yelina pôs suas mãos no peito de Huitzilopochtli e chacoalhou seu corpo. “Acorde, por favor, grande guerreiro!”. Seu sangue derramou-se sobre ele e foi absorvido pelas penas. “Acorde! Estamos morrendo! Precisamos de você!”. Debruçou-se sobre o corpo da divindade e chorou copiosamente.

Ela sentiu algo vibrando pelo seu corpo. Começou pelas mãos, mas foi espalhando-se pelos braços, corpo, até chegar à cabeça e aos pés. Era como se fosse ferroada por dezenas de abelhas ao mesmo tempo. Seu corpo tremia, e ela não conseguia se mexer. Sua visão turvou, e uma voz repetia uma palavra em sua cabeça. 

Conexão.

Quando finalmente voltou a mexer-se, Yelina percebeu que estava no chão. Huitzilopochtli estava sentado sobre a cama, de cabeça baixa. Uma de suas mãos estava aberta, com a palma para cima. Yelina levantou-se e, instintivamente, pôs a mão sobre a dele. O Deus apertou a sua mão. Com a outra, rasgou o peito da sacerdotisa.

O braço de Huitzilopochtli entrou pelo peito de Yelina, e ela sentia a mão do Deus envolvendo seu coração. Estranhamente, não sentia dor. O braço foi enterrando-se cada vez mais, e a divindade começou a desfazer-se dentro dela. Cada vez mais a divindade e a sacerdotisa eram menos dois e mais um. Yelina sentia uma força colossal correndo pelo seu corpo. A força de centenas de milhares de astecas. A força da própria Guerra.

Quando já não havia Deus na sua frente, Yelina ouviu a porta se abrir. Seu corpo agora estava coberto de penas azuis. Seus olhos era fogo vivo, e um grande cocar de penas de colibri adornavam sua cabeça. Os invasores olhavam para ela, estupefatos, até que um deles disparou com seu tubo de fogo. A explosão acertou em cheio.

Sequer manchara suas lindas penas. Yelina sorriu.

“Clamem pelo seu Deus, cobras traiçoeiras. Vocês vão precisar dele.”






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