A sensibilidade flaubertiana em "Três Contos"


Ao contrário de muitas pessoas, não iniciei minhas leituras em Gustave Flaubert pelo famoso romance Madame Bovary, mas sim pelo "Três Contos" e, embora não devesse, estou muito feliz de não ter esbarrado em Flaubert antes e por ter começado pelos contos de que quase não se fala sobre. Os três contos são "Um coração simples", "São Julião Hospitaleiro" e "Herodíade", e até que os três ficassem prontos foram 18 meses de trabalho.

O primeiro conto escrito foi o de São Julião, mas Flaubert fez uma pausa enquanto o escrevia devido a crítica de uma amiga escritora que dizia que sua escrita não tinha sensibilidade. Para contradizê-la, escreveu "Um coração simples", em que a personagem principal que leva o nome Felicité (em algumas traduções, "Felicidade") vive uma vida sofrida e, ainda assim, permanece com o coração bom e amável. A amiga de Flaubert morreu antes que ele terminasse o conto, ainda assim o texto serviu de prova que a escolha das palavras certas, que o labor da literatura, é capaz de sensibilizar sem apelar diretamente para as emoções do leitor.

Nas entrelinhas de "Um coração simples", o leitor se comove com a personagem Felicité, mesmo que ela própria não reconheça as faltas da sua vida. É uma personagem que transborda suas faltas em amor, o amor em questão direcionado à  Deus, à patroa, aos filhos da patroa, ao sobrinho, ao velhinho doente de quem cuidou, ao papagaio que empalhou depois de morto, o mesmo papagaio que viu nos seus segundos finais de vida, como incorporação do Espírito Santo.

Em São Julião Hospitaleiro, Flaubert apoia-se na lenda bíblica de São Julião para escrever, embora os tons flaubertianos - acredito eu - enriqueçam bem mais a lenda original, que é muito enxuta. Julião era filho de um rei e de uma rainha e, após seu nascimento, tanto o rei como a rainha receberam  individualmente previsões do futuro de seu por meio de um ancião misterioso, mas enquanto o rei entendeu que o filho seria um grande líder de guerra, a rainha entendeu que ele seria uma importante figura do clero. Não contaram esse fato um para o outro.

Julião crescia saudável, mas com sinais de maldade. O pai o ensinou a usar arco-e-flecha e espadas, e o ensinou a caçar. As caças duravam dias e muito agradava a Julião matar os animais. As descrições das caças de Julião ocupam mais de duas páginas e são bem detalhadas. Um dia, um dos animais lança uma maldição que faria Julião matar seus pais. Com medo, ele foge, jura nunca mais caçar animais e passa a viver como soldado de um exercito. Depois, como reconhecimento de seu mérito, um rei o casa com sua filha.

Anos depois, não se contendo mais, Julião sai de noite para caçar, mas na mesma noite um casal chega no castelo e é atendido pela esposa de Julião, que logo depois descobre que se tratam dos pais do seu marido. Ela os deixa dormir no próprio quarto, por ser mais confortável, mas Julião, ao chegar pela manhã, vê duas formas embaixo do lençol e, consumido pela ira de ser traído, mata ambos. Depois de descobrir que são seus pais, se exila e passa a ajudar as pessoas que tentam atravessar um rio traiçoeiro. Um dia, ele ajuda um leproso, dá da própria comida, oferece as roupas, a cama e o próprio corpo para aquecê-lo. É então que Julião sobe aos céus e vira um santo.
Detalhe do vitral de São Julião 
na Catedral de Rouen, França

A semelhança com Édipo Rei é notável: há a profecia, o destino do qual não se pode fugir, a morte dos pais e o exílio. Com exceção do "final feliz" - se é que podemos chamar isso de final feliz - Julião e Édipo são bem parecidos.

Os elementos vida, morte e espiritualidade são tratados nos dois contos anteriores. As descrições características de Flaubert também estão presentes como elemento indispensável e incansável, então se você tiver problemas com as descrições alencarinas, em Três Contos garanto que não será um problema.

Italo Calvino em "Porque ler os clássicos" fala que o terceiro conto, "Herodíade", não segue a mesma linha dos outros dois, e por que concordo com ele, decidi escrever apenas sobre os dois primeiros e fazer uma postagem individual para esse.

Sugiro a leitura de Três Contos para quem deseja iniciar em Flaubert. São Julião e, principalmente, Felicité marcaram muito da minha atual experiência literária e renderam debates na universidade, por isso desejo uma boa leitura e ótimas reflexões aos que ainda não leram.

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