Conto de fadas


O relógio batia oito e meia da noite e a babá acabara de entrar no quarto com um livro nas mãos. A menina adorava ouvir contos de fadas antes de dormir. A babá aproximou-se da cama, sentando-se em uma cadeira acolchoada, abriu o livro e começou a ler.

**

Era uma vez, em um reino muito, muito distante, uma família feliz. O rei e sua rainha eram muito amados por todos os seus súditos. Eram reis pacíficos e que sempre tentavam resolver os problemas do povo de modo a que esses permanecessem felizes.

Tudo era belo e calmo naquele reino, até que, em uma noite de festa, com o grande salão repleto de convidados, o inesperado aconteceu. Os reis caíram mortos no chão, enquanto valsavam sua música predileta.

Os convidados todos ficaram perplexos com aquilo, muitos choravam a perda de seus amados regentes. A notícia espalhou-se rápido pelo reino e muitos foram os súditos que prestaram homenagens.

O capitão da guarda iniciou uma cautelosa investigação para apurar as causas do ocorrido. E como o trono não poderia ficar vazio, o príncipe assumiu o posto.

Nessa mesma época, os reinos vizinhos entraram em guerra entre si e começaram a buscar aliados. O incipiente rei, ainda em luto, relutou exigir tanto de seu povo.

Meses se passaram e nada se descobria da morte dos reis. Por outro lado, a guerra dos outros reinos já chegava a suas muralhas do pacífico reino. Seu povo já sofria sem alimentos.

Assim, o novo rei decidiu aliar-se a uma das partes e levar seu exército àquela guerra. Enquanto ele estivesse longe, o trono seria guardado por sua irmã.

Diferente de seu irmão, a princesa não era carismática. Na verdade, o povo a odiava. Todos a acusavam de ser muito orgulhosa e de maltratar os outros.

Conta-se que certa vez, quando povo já cria que seu príncipe também estivesse morto, em campo de batalha, a rainha passava em sua carruagem pelas ruas do reino e ouviu um jovem perguntando a seu pai sobre os antigos reis. Ao ouvir isso, a rainha ordenou que a carruagem parasse. Ela abriu a porta e desceu... Olhou para o rapaz e, em seguida, para um de seus guardas pessoais. E, tão rápido como apenas um guerreiro hábil faria, sacou a espada da armadura do guarda e cortou a garganta do menino de um lado a outro. Quando este caiu, ela aproximou-se e, certeira como um carrasco, terminou de decepar-lhe a cabeça. E devolvendo a espada a seu dono, ordenou que aquela cabeça fosse exposta em praça pública e que o coração do jovem lhe fosse servido no jantar daquele dia.

Anos se passaram e todos já haviam esquecido dos anos anteriores ao reinado de Vossa Majestade... O povo já não era bem-vindo ao palácio e muitos também não adentravam a floresta que cercava o reino. A Floresta Nebulosa, como fico conhecida, costumava ser iluminada, robusta e alegre, mas desde que a rainha subiu ao poder, ela passou a ser escura, cheia de caminhos confusos, ervas daninhas e espinhos. Os mais antigos diziam que ela era controlada pelos desejos de Vossa Majestade e que, muitas vezes, ela havia sido vista entrando na mata para fazer oferendas aos que ninguém mais via.


Mas nem tudo estava perdido. Um dia, crianças curiosas que costumavam brincar perto da floresta, avistaram um vulto aproximando-se. Assustadas, elas gritaram, chamando a atenção de todos que estavam por perto.

Nesse momento, saiu por entre os galhos e espinhos, um homem alto e forte, contudo muito ferido, talvez pela guerra, que dizimara vários reinos, talvez pela floresta traiçoeira. Ele deu alguns passos no sentido da multidão que se aglomerava e caiu desmaiado.

Um casal ajudou-o, o que havia sido proibido pela rainha sob pena de ter suas mãos e pés cortados e seus olhos arrancados por corvos, escondendo-o em um celeiro e cuidando de seus ferimentos.

Quando o homem acordou, perguntou sobre os muros que haviam ao redor do reino e sobre como os camponeses conseguiram proteger-se da truculenta guerra.

Todos que o ouviam achavam aquilo estranho. Os mais novos, porque não conheciam o reino antes de Sua Majestade, e os mais velhos porque sentiam como se aquele homem já estivesse estado lá antes.

Contrariando ao que todos lhe diziam, ele quis ir ao castelo conversar com a rainha. Saiu do celeiro onde estava escondido e caminhou pelas estradas largas que levavam a praça central. De lá ele seguiria um caminho reto até o palácio. Um caminho do qual ele se lembrava ser cheio de comerciantes, todos vendendo seus produtos alegremente, e muitas moças e senhoras desfilando seus vestidos coloridos, uns cheios de adornos, outros muito simples.

Conforme ele foi andando, começou a perceber que quase não havia movimentação na praça... E, se lá não tinha um grande movimento de pessoas, era porque o caminho que ele iria traçar seria muito diferente daquele que ele se lembrava.

Quando chegou à rua que daria no castelo, o homem parou. Seu olhar tornou-se triste e perturbado... A cena que ele vira à frente era inconsolável. A rua que antes era alegre, agora tinha o chão de pedra polida enegrecido pela quantidade de sangue que havia sido derramado. Dos dois lados da rua, formando duas fileiras, estavam expostas cabeças fincadas em estacas presas ao chão. Eram várias... Algumas com rostos conhecidos, outras eram de completos estranhos.

Enquanto observava perplexo o cenário, o homem não percebeu a aproximação dos guardas reais. Um destes o golpeou pelas costas e o homem desmaiou.

Quando ele acordou, estava em um quarto iluminado apenas pela fraca luz natural, que entrava pela única janela que havia. Pelo nível de luz, ele percebeu que logo escureceria.

Assim que a rainha voltou de seu passeio costumeiro pela floresta, foi informada da presença do forasteiro. Horas depois, lá estava ela conversando com seu prisioneiro.

Vossa majestade era muito boa ao conversar com seus prisioneiros. Ela tinha um arsenal muito interessante de objetos de tortura. E foi fazendo uso desses objetos que ela descobriu que aquele homem era na verdade seu irmão, que havia ido para a guerra. Quando tomou consciência do fato, pediu desculpas ao homem, dizendo que fora daquela maneira que ela defendera o reino durante todos esses anos que ele não esteve presente.

Dois guardas levaram-no para outro quarto e uma das damas de companhia da rainha ficou encarregada de cuidar dos ferimentos do guerreiro. Ele passou a ser bem tratado e bem alimentado.

Meses se passaram e a recuperação do homem estava ocorrendo bem. Ele era visto caminhando, vez ou outra, no pátio do castelo ou a folgar na janela de sua alcova. O povo passou a admira-lo por sua coragem de enfrentar a rainha. Logo surgiram poesias e músicas contando suas proezas em batalha. Muitas eram inventadas, já que, desde que adentrara o castelo, não mais saíra. Por outro lado, os comentários sobre a rainha continuavam horrendos. Acusavam-na de trancafiá-lo para que o povo não o apoiasse e ela continuasse no poder.

Uma noite, durante o gélido inverno, a rainha mandou chamar todos os habitantes do reino para uma festa nos jardins do palácio.

O povo achou aquilo muito estranho, mas, motivado pela fome, que assolava o reino durantes os longos invernos, e pela esperança de que o guerreiro desconhecido pudesse ter mudado o caráter da rainha, aceitou o convite.

O caminho que levava ao castelo, antes cheio de cabeças dos inimigos da rainha, agora estava limpo, apenas coberto por uma fina camada de neve e decorado com longas bandeiras coloridas que pendiam do alto dos muros.

O jardim do castelo era grande o suficiente para caber todos os súditos. Mesas foram dispostas para que todos, sem exceção, participassem do banquete.

Serviu-se carne salgada, e frutas e verduras produzidas pelos camponeses. Para beber, havia um vinho rubro, docemente ácido.

Todos se fartaram e, em meio a tanta alegria, agradeceram e abençoaram à generosa rainha.

Quando a noite já não tinha mais estrelas e a Lua estava onipotentemente alta no céu, a rainha ergueu-se de seu trono, que estava localizado na sacada central do castelo, e anunciou, com um sorriso nos lábios, que seu querido povo havia sido abençoado com o sangue de seus guerreiros e a carne de seus inimigos.

Nesse momento, os guardas reais colocaram sobre cada mesa uma travessa com tampa de alumínio. Quando a rainha deu o sinal, os guardas retiraram as tampas e todos os convidados ficaram perplexos. As reações que seguiram foram as mais diversas, alguns vomitavam, outros gritavam, muitos desmaiavam.

Sob as tampas havia cabeças de homens e mulheres, conhecidos e desconhecidos de muitos que ali estavam.

E, como se não fosse suficiente, a rainha destampou sua travessa, e lá estava a cabeça do guerreiro desconhecido.

Foi então, que o povo percebeu que aquele era o verdadeiro herdeiro do trono, que, como se contava nas histórias, havia partido para a guerra, logo no início de seu reinado. Aquele era o irmão da rainha.

**

A menina já havia dormido. A babá fechou o livro calmamente. Levantou-se da cadeira onde estava e ajeitou o cobertor da criança.

Ao aproximar-se da porta do quarto, sentiu a presença de seu mestre. Ele estava parado no corredor escuro, observando a garota.

– Esperarei o tempo que for preciso... No momento certo, ela será perfeita! – Disse Bertrand.

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